quinta-feira, junho 14, 2007

o bêbado

(...)O bêbado não era um bêbado. Um bêbado é um homem que se naufraga a si mesmo no menor espaço possível. O naufrágio deste homem era bem maior. O naufrágio deste homem fazia-o mirar as crianças, dias após dias, como uma dança contínua de fantasmas que apenas de dia dançavam. Não havia diferenças de dias. Não havia diferenças de horas. Apenas intensidades de luz, um arco, que pautava as pausas das levas de crianças, e únicas deixas que o permitiam levantar-se e sair do parque, sair do seu covil e espojar-se no parque. Um tic e um toc. Entre esses, nada, apenas uma espera. Mas uma espera que nada tinha de negativo, de vazio, de ausência, de fraqueza. Uma espera toda ela preenchida por essas danças, esses movimentos, e esses olhos presos no fluxo. O bêbado procurava aprender um vocabulário básico, feito de uma mão-cheia de nomes que se ocupassem do que observava no parque, para poder começar a ter uma ideia que lhe explicasse, para já, porque razão haveria que explicar as coisas. Porque não deixar-se levar num naufrágio, entendo que a morte nos pertence. Porque razão precisar de explicações?(...)
Pedro Moura, O Parque

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