segunda-feira, maio 15, 2006

Nós dois ainda


para a Ana
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Nós dois ainda
1948


Música do fogo, tu não soubeste tocar.
Lançaste sobre a minha casa um pano negro. O que é este opaco em toda a parte? É o opaco que tapou o meu céu. O que é este silêncio em toda a parte? É o silêncio que calou o meu canto.
*
De esperança tinha-me bastado um fio de água. Mas tu levaste tudo. O som que vibra foi-me retirado.
*
Tu não soubeste tocar. Pegaste nas cordas. Mas não soubeste tocar. Estragaste logo tudo. Partiste o violino. Lançaste sobre a pele de seda uma chama para fazer um horrível pântano de sangue.
*
A felicidade ria-lhe na alma. Mas era tudo engano. Não foi por muito tempo que riu.
*
Ela ia num comboio que avançava em direcção ao mar. Ia dentro de um projéctil que seguia em cima do rochedo. Embora imóvel, dirigiu-se impetuosa para a serpente de fogo que a devia destruir. E aí de súbito foi agarrada, enquanto desprevenida penteava os cabelos, contemplando a felicidade ao espelho.
*
E quando viu a chama chegar junto de si, oh...
*
No mesmo instante, a taça foi-lhe arrancada das mãos. Que não seguraram mais nada. Viu que a atiravam para um canto. Nele se deteve como num enorme objecto de meditação a resolver antes de mais nada. Dois segundos mais tarde, dois segundos demasiado tarde, fugia para a janela a pedir socorro.
Toda a chama então a envolveu.
*
Está deitada numa cama, de onde o sofrimento sobe até ao céu, até ao céu, sem encontrar deus... de onde o sofrimento desce até ao fundo do inferno, até ao fundo do inferno sem encontrar demónio.
*
O hospital dorme. A queimadura desperta. O seu corpo, como um parque abandonado...
*
Defenestrada de si mesma, procura a maneira de entrar. O vazio em que paira não responde aos seus movimentos.
*
Lentamente, na granja, o seu trigo arde.
*
Cega, através da longa barragem de sofrimento, durante um mês ela torna a subir, nadando com um esforço atroz, o rio da vida.
Paciente, volta, a traçar as formas elegantes no inominável inchaço, tece de novo a camisa da sua pele fina. Está próxima a cura. Tira amanhã o último penso. Amanhã...
*
Música do sangue, tu não soubeste tocar. Também tu não soubeste. Lançaste subitamente, estupidamente, o teu tolo pequeno coágulo para obstruir uma nova aurora.
No mesmo instante ela já não encontrou lugar. Teve mesmo que se voltar para a Morte.
Quase não deu pelo caminho. O primeiro segundo mostrou o abismo. O seguinte precipitava-a nele.
*
Do lado de cá ficámos atónitos. Não tivemos tempo para dizer adeus. Não tivemos tempo para uma promessa.
Ela tinha desaparecido do filme desta terra.

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Lou
Lou
Lou, no retrovisor de um breve instante
Lou, não me vês?
Lou, o destino de ficarmos juntos para sempre em que tanto acreditavas
Que é dele?
Não vais ser como as outras que nunca mais dão sinal, submergidas no silêncio.
Não, uma morte não deve chegar para apagar o teu amor.
Na horrível espiral
que te afasta até não sei que milésima diluição procuras ainda, procuras um lugar para nós
Mas tenho medo
Não se tomaram precauções bastantes
Devíamos estar mais informados
Alguém escreve que és tu, mártir, quem vai velar por mim agora.
Oh! Duvido.
Quando toco o teu fluido tão delicado
que permanece no quarto e os teus objectos familiares que aperto nas mãos
esse fluido ténue que tanto urge proteger
Oh, duvido, duvido e tenho medo por ti,
impetuosa e frágil, à mercê das catástrofes
Todavia, vou a repartições, à procura de certificados
desperdiçando momentos preciosos
que devíamos antes gastar connosco precipitadamente
ao mesmo tempo que tu tremes de frio
aguardando na tua maravilhosa confiança que eu venha ajudar a libertar-te, pensando «Ele vem de certeza
Teve talvez um contratempo, mas não deve tardar
Há-de vir, eu conheço-o
Não vai deixar-me sozinha
Não é possível
não vai deixar-me sozinha, a sua pobre Lou...»
*
Eu não conhecia a minha vida. A minha vida passava através de ti. Esse grande problema complicado tornava-se simples. Apesar da inquietação, tornava-se simples.
A tua fraqueza ao apoiar-se em mim dava-me força.
*
Diz, será que não vamos realmente encontrar-nos nunca mais?
*
Lou, falo uma língua morta, agora que já não te falo. Já vês como em mim resultaram os teus esforços de trepadeira. Vês isso, ao menos? É verdade que tu nunca duvidaste. Era necessário um cego como eu e era-lhe necessário tempo, era-lhe necessária a tua longa doença, a tua beleza, a ressurgir da magreza e das febres, era necessária essa luz em ti, essa fé, para enfim furar a parede teimosa da sua autonomia.
*
Foi tarde que vi. Foi tarde que soube. Tarde que aprendi a palavra «juntos», que não parecia estar no meu destino. Mas não demasiado tarde.
Os anos foram a nosso favor, não contra nós.
*
As nossas sombras respiraram juntas. A nossos pés as águas do rio dos acontecimentos deslizavam quase em silêncio.
As nossas sombras respiravam juntas e com elas tudo ficava resguardado.
*
Tive frio com o teu frio. Bebi goladas do teu sofrimento. Perdíamo-nos no lago das nossas trocas.
*
Rico de um amor imerecido, rico que ignorava sê-lo, com a inconsciência dos possidentes, perdi ser amado. A minha fortuna derreteu-se num dia.
*
Árida, a minha vida continua. Mas não regresso a mim. O meu corpo permanece no teu corpo delicioso e dentro do meu peito há plumas que se agitam ao vento da distância e me fazem sofrer. A que já não é, exige, e a sua ausência absorvente devora-me e invade-me.
*
Chego a ter saudades dos dias do teu sofrimento atroz na cama de hospital, quando através de corredores nauseabundos atravessados de gemidos me dirigia para a múmia densa do teu corpo envolto em ligaduras e de súbito ouvia emergir como que o «tom» da nossa aliança, a tua voz, doce, musical, controlada, resistindo com orgulho à fealdade do desespero, quando por tua vez ouvias o meu passo, e murmuravas, tranquilizada: «Ah, estás aí».
Punha a mão no teu joelho, por cima, do cobertor sujo e tudo desaparecia então, o mau cheiro, a horrível indecência do corpo tratado como um barril ou um esgoto, por estranhos afadigados e cuidadosos, tudo ficava para trás, deixando, os nossos dois fluidos, através das ligaduras, tornarem a encontrar-se, juntar-se, misturar-se, num aturdimento do coração, no auge da desgraça, no auge da doçura.
As enfermeiras, o interno, sorriam; os teus olhos cheios de fé apagavam os dos outros.
*
O que está só volta-se para a parede à noite, para te falar. Ele sabe o que te animava. Vem partilhar o dia. Observou com os teus olhos. Ouviu com os teus ouvidos. Tem sempre coisas para ti.
*
Não me vais responder um dia?
*
Mas talvez a tua pessoa se tenha transformado numa espécie de ar de neve, que entra pela janela que tornamos a fechar, tomados de arrepios ou de um mal-estar prenúncio de drama, como me aconteceu há semanas atrás. O frio concentrou-se-me de súbito nos ombros cobri-me precipitadamente e afastei-me quando eras tu talvez e o mais quente que podias mostrar-te, à espera de ser bem acolhida; tu, tão lúcida, já não conseguias exprimir-te de outra maneira. Quem sabe se neste preciso momento tu não estás à espera, ansiosa, que eu enfim compreenda, e que venha, longe da vida onde já não estás, juntar-me a ti, pobremente, pobremente, decerto, sem meios, mas nós dois ainda, nós dois... »

Henri Michaux, Nous deux encore (1948); Nós dois ainda, trad. Rui Caeiro, & etc, Lisboa, 1988, pp. 23-43

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