segunda-feira, maio 15, 2006

O segredo morre (Michaux e Celan III)

« Com Épreuves, exorcismes, Nous deux encore é o único livro de Michaux ao qual uma data está tão visivelmente associada ao título: sobressai assim a violência do acontecimento – a morte atroz da sua mulher – sublinhada, como um papel de luto, pela tipografia negra sobre branca da capa.

No exemplar endereçado a Adrienne Monnier, Michaux escreve, em dedicatória: “Algo que não / nos podemos perdoar de não ter / melhor realizado.” Esta responde-lhe, a 7 de Novembro de 1948: “Li e reli as páginas que escreveu para a sua mulher. São muito belas. Parece-me que disse tudo o que era preciso dizer. Não podia fazer melhor – melhor teria sido talvez menos bem. / Tenho a certeza que Marie-Louise se alegra. Ganhou com a sua morte um canto seu de fazer morrer de inveja não sei quantos mortais. / Ela já não estará tão perdida agora. Vai atravessar o Amenti com um passo bastante seguro. Você sorrirá em breve com sorriso dela.”

A 6 de Fevereiro de 1959, Paul Celan escreve a Michaux, de Paris, onde vive, a seguinte carta: “Traduzi, há mais de um ano, Nous deux encore. / Fi-lo, permita-me que lho diga, para mim, ou antes, porque traduzir essas páginas significava reduzir as distâncias, cingir o vago, sair do aproximado. Pensava escrever-lhe, mas dizia-me, ao mesmo tempo, o quanto lhe devia ser penoso saber que uma outra mão que não a sua tinha ousado retraçar essas linhas.” [...] Michaux responde-lhe (provavelmente no dia 11): “Um misto de incómodo, de vergonha, desde há muito se me tem, uma impressão de traição, de indecência, desde que ‘isso’ foi editado, periodicamente reavivado e hoje de novo volta a minha indelicadeza. / Devia... Mas que devia eu? / Através dessas palavras, ela vive. Mas o nosso segredo morre. / Assim, que objecção faria eu? Se há uma língua que possa guardar a discrição do íntimo, é a vossa. Permita-me apenas qu lhe diga (mas faço absolutamente questão): é preciso que seja apenas uma porta entreaberta. Nem uma palavra em revistas e uma tiragem limitada.” [...]

É preciso citar igualmente uma carta enviada a 10 de Novembro de 1948 por Michaux a Sr.ª Henein Pacha, mãe de Georges Henein [...]: “Os segredos felizes atravessam dificilmente os infelizes, e a barreira do terrível último mês impede-me de evocar a alegria de viver que tanto habitava a minha mulher. / Este escrito está tão aquém do que era preciso que nem ouso enviá-lo ao seu filho ou a outros amigos severos devido às... diferenças... de pensamento. Apesar do estilo e de outras coisas que a incomodarão, decido-me por lho endereçar. Como mais indulgente talvez à amizade.” »


Raymond Bellour et Ysé Tran, «Note sur le texte Nous deux encore», in Henri Michaux, Oeuvres complètes, II, Gallimard, Paris, 2001, p. 1094-6

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