segunda-feira, abril 10, 2006

A imanência: uma vida...


desenho de Ana Eliseu____


O que é um campo transcendental? Distingue-se da experiência porquanto não reenvia a um objecto nem pertence a um sujeito (representação empírica). Apresenta-se igualmente como pura corrente de consciência a-subjectiva, consciência pré-reflexiva impessoal, duração qualitativa da consciência sem eu. Pode parecer curioso que o transcendental se defina por tais dados imediatos: diremos empirismo transcendental por oposição a tudo o que constitui o mundo do sujeito e do objecto. Há qualquer coisa de selvagem e de potente num tal empirismo transcendental. Não é certamente o elemento da sensação (empirismo simples), pois a sensação é apenas um corte na corrente de consciência absoluta. É antes, por muito próximas que estejam duas sensações, a passagem de uma à outra como devir, como aumento ou diminuição da potência (quantidade virtual). Assim, será preciso definir o campo transcendental pela pura consciência imediata sem objecto nem eu, enquanto movimento que não começa nem acaba? (Mesmo a concepção espinosista da passagem ou da quantidade da potência faz apelo à consciência).
Mas a relação do campo transcendental com a consciência é somente de direito. A consciência só se torna um facto se um sujeito é produzido ao mesmo tempo que o seu objecto, ambos fora de campo e aparecendo como «transcendentes». Pelo contrário, enquanto a consciência atravessa o campo transcendental a uma velocidade infinita por toda o lado difusa, não há nada que a possa revelar. Ela apenas se exprime de facto ao reflectir-se sobre um sujeito que a reenvia a objectos. Eis porque o campo transcendental não se pode definir pela sua consciência, no entanto, coextensiva, mas subtraída a toda a revelação.
O transcendente não é o transcendental. Na ausência de consciência, o campo transcendental define-se como um puro plano de imanência, pois escapa a toda a transcendência do sujeito como à do objecto. A imanência absoluta está nela mesma: não está em algo, a algo, não depende de um objecto e não pertence a um sujeito. Em Espinosa, a imanência não é à substância, mas a substância e os modos estão na imanência. Quando o sujeito e o objecto, que caem fora do plano de imanência, são tomados como sujeito universal e objecto qualquer aos quais a imanência é ela mesma atribuída, é toda uma desnaturação do transcendental que não faz mais do que reduplicar o empírico (como em Kant), e uma deformação da imanência que se encontra então contida no transcendente. A imanência não se relaciona a um Algo como unidade superior a todas as coisas, nem a um Sujeito como acto que opera a síntese das coisas: é quando a imanência já não é imanente a outra coisa do que a si própria que podemos falar de um plano de imanência. Tal como o campo transcendental não se define pela consciência, o plano de imanência não se define por um Sujeito ou um Objecto capazes de o conter.
Diremos da pura imanência que ela é UMA VIDA, e nada mais. Ela não é imanente à vida, mas a imanência que não está em nada é ela mesma uma vida. Uma vida é a imanência da imanência, a imanência absoluta: ela é potência, beatitude completas. É na medida em que ultrapassa as aporias do sujeito e do objecto que Fichte, na sua última filosofia, apresenta o campo transcendental como uma vida, que não depende de um Ser e não está submetida a um Acto: consciência imediata absoluta cuja própria actividade já não reenvia a um ser, mas não cessa de se colocar numa vida. O campo transcendental torna-se então um verdadeiro plano de imanência que reintroduz o espinosismo no mais profundo da operação filosófica. Não foi uma aventura semelhante a que sucedeu a Maine de Biran, na sua «última filosofia» (a que estava demasiado fatigado para levar a bom porto), quando descobria sob a transcendência do esforço uma vida imanente absoluta? O campo transcendental define-se por um plano de imanência, e o plano de imanência por uma vida.
O que é a imanência? uma vida... Ninguém melhor que Dickens contou o que é uma vida, tendo em conta o artigo indefinido como índice do transcendental. Um canalha, um mau sujeito desprezado por todos é trazido agonizante, e eis que aqueles que o tratam manifestam uma espécie de solicitude, de respeito, de amor pelo menor sinal de vida do moribundo. Todos se empenham em salvá-lo, ao ponto de no mais profundo do seu coma o vil homem sentir ele próprio qualquer coisa de doce o penetrar. Mas à medida que revém à vida, os seus salvadores fazem-se mais frios, e ele reencontra toda a sua grosseria, a sua maldade. Entre a sua vida e a sua morte, há um momento que é já somente o de uma vida jogando com a morte. A vida do indivíduo deu lugar a uma vida impessoal, e contudo singular, que resgata um puro acontecimento liberto dos acidentes da vida interior e exterior, quer dizer, da subjectividade e da objectividade do que ocorre. «Homo tantum» com o qual todos se compadecem e que atinge uma espécie de beatitude. É uma heceidade, que já não é individuação, mas singularização: vida de pura imanência, neutra, para além do bem e do mal, porque só o sujeito que a incarnava no meio das coisas a tornava boa ou má. A vida de tal individualidade apaga-se em prol da vida singular imanente a um homem que já não tem nome, se bem que não se confunda com qualquer outro. Essência singular, uma vida...
Não se deveria comprimir uma vida no momento simples em que a vida individual afronta a universal morte. Uma vida está em toda a parte, em todos os momentos que atravessa tal ou tal sujeito vivo e que mensuram tais objectos vividos: vida imanente levando consigo os acontecimentos ou singularidades que se limitam a actualizar nos sujeitos e nos objectos. Esta vida indefinida não tem ela própria momentos, mesmo que próximos uns dos outros, mas apenas entre-tempos, entre-momentos. Ela não advém nem sucede, mas apresenta a imensidade do tempo vazio em que se vê o acontecimento ainda por vir e já ocorrido, no absoluto de uma consciência imediata. A obra romanesca de Lernet-Holenia coloca o acontecimento num entre-tempos que pode engolir regimentos inteiros. As singularidades ou os acontecimentos constitutivos de uma vida coexistem com os acidentes da vida correspondente, mas não se agrupam nem se dividem da mesma forma. Comunicam entre eles de forma totalmente diferente da dos indivíduos. Dá-se mesmo que uma vida singular possa dispensar toda a individualidade, ou qualquer outro concomitante que a individualize. Por exemplo, as crianças pequeninas parecem-se todas e não têm individualidade; mas têm singularidades, um sorriso, um gesto, uma careta, acontecimentos que não são caracteres subjectivos. As crianças pequeninas são atravessadas por uma vida imanente que é pura potência, e mesmo beatitude através dos sofrimentos e das fraquezas. Os indefinidos de uma vida perdem toda a indeterminação na medida em que preenchem um plano de imanência ou, o que vai dar rigorosamente ao mesmo, constituem os elementos de um campo transcendental (a vida individual, pelo contrário, permanece inseparável das determinações empíricas). O indefinido enquanto tal não marca uma indeterminação empírica, mas uma determinação de imanência ou uma determinabilidade transcendental. O artigo indefinido não é a indeterminação da pessoa sem ser a determinação do singular. O Um não é o transcendente que pode conter até a imanência, mas o imanente contido num campo transcendental. Um é sempre o índice de uma multiplicidade: um acontecimento, uma singularidade, uma vida... Podemos sempre invocar um transcendente que cai fora do plano de imanência, ou mesmo que se lhe atribui, mas toda a transcendência constitui-se unicamente na corrente de consciência imanente própria a esse plano. A transcendência é sempre um produto da imanência.
Uma vida contém apenas virtuais. É feita de virtualidades, acontecimentos, singularidades. Aquilo a que chamamos virtual não é algo a que falta realidade, mas o que se envolve num processo de actualização segundo o plano que lhe dá a sua realidade própria. O acontecimento imanente actualiza-se num estado de coisas e num estado vivido que fazem com que aconteça. O próprio plano de imanência actualiza-se num Objecto e num Sujeito aos quais se atribui. Mas, por pouco separáveis que sejam da sua actualização, o plano de imanência é ele próprio virtual, tal como os elementos que o povoam são virtualidades. Os acontecimentos ou singularidades dão ao plano toda a sua virtualidade, como o plano de imanência dá aos acontecimentos virtuais uma plena realidade. Ao acontecimento, considerado como não-actualizado (indefinido), não falta nada. Basta pô-lo em relação com os seus concomitantes: um campo transcendental, um plano de imanência, uma vida, singularidades. Uma ferida incarna-se ou actualiza-se num estado de coisas e num vivido; mas é ela mesma um puro virtual sobre o plano de imanência que nos impele numa vida. A minha ferida existia antes de mim... Não uma transcendência da ferida como actualidade superior, mas a sua imanência como virtualidade sempre no seio de um meio (campo ou plano). Há uma grande diferença entre os virtuais que definem a imanência do campo transcendental, e as formas possíveis que os actualizam em algo de transcendente.

Gilles Deleuze, «L'immanence: une vie...», Philosophie, n.º47, Setembro 1995, Minuit, Paris, pp. 3-7

1 comentário:

Anónimo disse...

Muitissimo obrigado André. Há algum tempo que procurava este texto. Valeu.
Jadson.