segunda-feira, abril 10, 2006

Filosofia da pontuação


Filosofia da pontuação. O texto de Deleuze [...] tem por título A imanência: uma vida... e foi publicado na revista Philosophie dois meses antes da morte do seu autor. [...] trata-se de um texto curto que têm a aparência de uma breve nota escrita ao sabor da pena. O próprio título, apesar da sua aparência vaga e quase suspensa, tem uma estrutura inabitual que não pode deixar de ter sido pensada de forma atenta. Com efeito, os dois conceitos-chave não estão unidos num sintagma, nem sequer ligados pela partícula e – tão característica dos títulos deleuzianos – : cada um deles é seguido de um sinal de pontuação (primeiro os dois pontos, depois as reticências). A escolha desta articulação absolutamente não sintáxica (nem hipotáxica, nem paratáxica, mas, poderíamos dizer, atáxica) não deve certamente nada ao acaso.
Excepção feita a algumas breves anotações de Adorno, carecemos quase totalmente de elementos para uma filosofia da pontuação. Já se pode observar que os substantivos não eram os únicos a poder alcançar uma dignidade terminológica, e que tal era igualmente o caso dos advérbios; Puder e Löwith sublinharam assim a função particular dos advérbios gleichwohl e schon em Kant e Heidegger, respectivamente. Em contrapartida, é menos frequente salientar que os sinais de pontuação – por exemplo, o hífen numa expressão como In-der-Welt-sein – podem assumir uma função técnica: o hífen é, deste ponto de vista, o mais dialéctico dos sinais de pontuação na medida em que une apenas porque distingue, e vice-versa. É o próprio Deleuze que sugere que a pontuação é de uma importância capital nos seus textos. Nos Diálogos, depois de ter desenvolvido a ideia de que a conjunção e possui um sentido particular, acrescenta isto: «Pena que, neste aspecto, muitos escritores suprimam a pontuação, que vale em francês por tantos E ». Se nos lembrarmos que esta teoria atribui ao mesmo tempo à partícula em questão um carácter destruidor (e substitui-se a é e desarticula a ontologia) e criador (e «faz fugir a língua» e introduz nela o agenciamento e o balbucio), então isto implica que os dois entre imanência e vida, tal como as reticências finais do título, servem uma intenção precisa.

Dois pontos: imanação. Nos tratados de pontuação, a função dos dois pontos é em geral definida pelo cruzamento de dois parâmetros: um valor de pausa (mais forte que o do ponto e vírgula, menos forte que o do ponto) e um valor semântico que marca a relação indissociável entre dois sentidos em que cada um, em si mesmo, não é senão parcialmente alcançado. Na série que se estabelece do sinal = (a identidade de sentido) ao hífen (a dialéctica da unidade e da separação), os dois pontos asseguram assim uma função intermediária. Deleuze poderia ter escrito A imanência é uma vida ou então A imanência e uma vida – no sentido em que e se substitui a é para criar um agenciamento – ; ou ainda A imanência, uma vida, segundo o princípio sublinhado por Masmejan que permite aos dois pontos serem vantajosamente substituídos por uma vírgula. Se ele, ao contrário, utilizou os dois pontos, foi, com toda a evidência, porque não visava nem uma pura identidade, nem uma simples conexão lógica. (Quando, no texto, Deleuze escreve no seguimento: «diremos da pura imanência que ela é UMA VIDA, e nada mais», basta lembrar os dois pontos do título para excluir que aqui se trate de uma identidade). Entre a imanência e uma vida, os dois pontos introduzem algo menos que uma identidade, mas algo mais que um agenciamento, ou mais precisamente um agenciamento de um tipo particular, uma espécie de agenciamento absoluto que inclui também a «não-relação» ou a relação derivando da não-relação de que fala Deleuze, no seu ensaio sobre Foucault, a propósito da relação com o Fora. Se retomarmos a metáfora de Adorno (dois pontos, sinal verde para o fluxo da linguagem) – metáfora que encontramos nos tratados sobre a pontuação que classificam os dois pontos entre os sinais «de abertura» – , então há entre a imanência e a vida uma espécie de passagem sem distância nem identificação, sem alteração espacial. Neste sentido, os dois pontos representam a deslocação da imanência em si própria, a abertura a um outro que permanece no entanto absolutamente imanente. Trata-se assim desse movimento que Deleuze, jogando com a emanação neoplatónica, chama de imanação.

Três pontos: virtualidade. Podemos entregar-nos a considerações análogas a propósito das reticências que fecham o título deixando-o aberto; nunca, poderíamos dizer, o valor de termo técnico atribuído a um sinal de pontuação foi mais evidente do que neste caso. Deleuze tinha salientado a capacidade das reticências em suspender todas as ligações sintáxicas em Céline: «Guignol’s Band encontra o objectivo último, frases exclamativas e reticências que desapossam toda a sintaxe em prol de uma pura dança das palavras». Há de maneira implícita na pontuação um elemento assintáctico, e ainda mais em geral, um elemento assemântico: basta pensar à ligação constante, sublinhada desde os primeiros tratados, que existe entre a pontuação e a respiração e que funcionam necessariamente como uma interrupção do sentido («o ponto médio, pode ler-se na Gramática de Dioniso da Trácia, indica o local onde se deve respirar»). Mas aqui as reticências não servem tanto para suspender o sentido e fazer dançar as palavras fora de toda a hierarquia sintáctica, quanto para transformar o estatuto mesmo das palavras das quais se tornam inseparáveis. Se, como disse Deleuze uma vez, a terminologia é a poesia da filosofia, então a função de terminus technicus não recobre o conceito de vida, nem sequer o sintagma uma vida, mas apenas o não-sintagma uma vida... O inacabamento que, segundo a tradição, caracteriza as reticências não reenvia a um sentido mais completo que teria sido omitido ou que estaria em falta (Claudel: «um ponto, é tudo; três pontos, não é tudo») mas a uma indefinição de tipo particular, que leva ao extremo o sentido infinitivo do artigo uma. «O indefinido enquanto tal, escreve Deleuze, não marca uma indeterminação empírica, mas uma determinação da imanência ou uma determinabilidade transcendental. O artigo indefinido não é a indeterminação da pessoa sem ser a determinação do singular».
O termo técnico uma vida... exprime essa determinabilidade transcendental da imanência enquanto vida singular, a sua natureza absolutamente virtual e o facto de que ela se define apenas através dessa virtualidade («Uma vida contém apenas virtuais. Ela é feita de virtualidades, acontecimentos, singularidades. Aquilo a que chamamos de virtual não é algo a que falta realidade... »). Os três pontos, enquanto suspendem toda a ligação sintáctica, mantém no entanto os termos em relação com a pura determinabilidade dessa ligação; levando-o para esse terreno virtual, eles excluem que o artigo «um» possa jamais transcender o ser que o segue – como acontece no caso contrário do neoplatonismo –.

Giorgio Agamben, «L’immanence absolue» [trad. do francês], in Gilles Deleuze: Une vie philosophique, pp. 167-170

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