[nestes tempos difíceis, é crescente a frequência com que deparamos com escritores (de fazedores-de-opinião nem se fala) que se reclamam, sem qualquer pudor, do problema do Mal – assim, com maiúscula e tudo –, etc. e tal... creio que é um sinal, suficientemente esclerosado, destes “anos de inverno”, como lhes chamou Guattari, ou da “Restauração” (Badiou, Le siècle), quero dizer, de um movimento generalizado, ia dizer organizado, de retracção, em que se afirmam impunemente coisas que seriam simplesmente intoleráveis, porque horríveis, há uns anos atrás. os exemplos são inúmeros e penosos. talvez por isso me sinta obrigado a lembrar, com este excertos difíceis mas tão potentes, que o Mal não é nada.]
« O que é o mal? Não há outros males além da diminuição da nossa potência de agir e da decomposição de uma relação. E, mesmo assim, a diminuição da nossa potência de agir é um mal apenas porque ameaça e reduz a relação que nos compõe. Assim, reteremos do mal a seguinte definição: é a destruição, a decomposição da relação que caracteriza um modo. Desde logo, o mal não se pode dizer senão do ponto de vista particular de um modo existente: não há Bem nem Mal na Natureza em geral, mas há bom e mau, há útil e prejudicial para cada modo existente. O mal é o mau do ponto de vista de tal ou tal modo. (...) Podemos falar de “mal” em dois casos: quando o nosso corpo é destruído, a nossa relação decomposta, sob a acção de outra coisa; ou então quando nós-próprios destruímos um ser semelhante a nós (...)*
O bom e o mau são duplamente relativos, e dizem-se um por relação ao outro, e os dois por relação a um modo existente. São os dois sentidos da variação da potência de agir: a diminuição dessa potência (tristeza) é má, o seu aumento (alegria) é bom (Ética, IV, 41). Desde logo, objectivamente, é bom o que aumenta ou favorece a nossa potência de agir, mau o que a diminui ou impede; e conhecemos somente o bom e o mau pelo sentimento de alegria ou tristeza de que temos consciência. Como a potência de agir é o que abre o poder de ser afectado ao maior número de coisas, é bom “o que dispõe o corpo a que este possa ser afectado de um maior número de maneiras”; ou o que mantém a relação de movimento e de repouso que caracteriza o corpo. Em todos este sentidos, o bom é o útil, o mau o prejudicial.**
Sendo o mal assim definido do nosso ponto de vista, vemos que é assim igualmente de todos os outros pontos de vista: o mal é sempre um mau encontro, o mal é sempre uma decomposição da nossa relação. O tipo destas decomposições é o da acção de um veneno sobre o nosso corpo. Segundo Espinosa, o mal suportado por um homem é sempre do tipo indigestão, intoxicação, envenenamento. E o mal feito ao homem por alguma coisa, ou pelo homem a outro homem, age sempre como um veneno, como um elemento tóxico ou indigesto. Espinosa insiste neste ponto quando interpreta um célebre exemplo: Adão comeu do fruto proibido. Não se tem de pensar, diz Espinosa, que Deus proibiu alguma coisa a Adão. Simplesmente, revelou-lhe que esse fruto era capaz de destruir o seu corpo e de lhe decompor a relação. (...)*
O bom e o mau exprimem então os encontros entre modos existentes (...). Sem dúvida todas as relações de movimento e de repouso se compõem no modo infinito mediato. Mas um corpo pode induzir as partes do meu corpo a entrar numa nova relação que não é directa ou imediatamente compatível com a minha relação característica: é o que se passa na morte. Se bem que inevitável e necessária, a morte é sempre o resultado de um encontro fortuito extrínseco, encontro com um corpo que decompõe a minha relação. A interdição divina de comer do fruto da árvore é apenas a revelação feita a Adão de que o fruto é “mau”, ou seja, que decomporá a relação de Adão. (...) Todo o mal se reduz ao mau, e tudo o que é mau é do tipo veneno, indigestão, intoxicação. Mesmo o mal que faço (mau = maldoso) consiste apenas nisto, em que associo a imagem de uma acção à imagem de um objecto que não pode suportar esse acção sem perder a sua relação constitutiva.**
Tudo o que é mau mede-se assim pela diminuição da potência de agir (tristeza-ódio), tudo o que é bom, ao aumento dessa mesma potência (alegria-amor). Daí a luta total de Espinosa, a denúncia radical de todas as paixões à base de tristeza, que inscreve Espinosa numa grande linhagem de Epicuro a Nietzsche. É uma vergonha procurar a essência interior do homem do lado dos maus encontros extrínsecos. Tudo o que envolve a tristeza serve a tirania e a opressão. Tudo o que envolve a tristeza deve ser denunciado como mau, e separando-nos da nossa potência de agir: não apenas o remorso e a culpabilidade, não apenas o pensamento da morte, mas mesmo a esperança, mesmo a segurança, que significam impotência. **
Em nenhum sentido é o Mal alguma coisa. Ser é exprimir-se, ou exprimir, ou ser expresso. O mal não é nada, por em nada ser expressivo. E sobretudo, não exprime nada. Não exprime nenhuma lei de composição, nenhuma composição de relações: não exprime nenhuma essência; não exprime nenhuma privação de um estado melhor na existência. (...) Segundo Espinosa, o Bem não tem mais sentido que o Mal: não há nem Bem nem Mal na Natureza. (...) a pseudo-lei moral mede apenas os nossos contra-sensos sobre as leis da natureza; a ideia de recompensas e de castigos testemunha apenas da nossa ignorância da verdadeira relação entre um acto e as suas consequências; o Bem e o Mal são ideias inadequadas, e são concebidas por nós na medida em que temos ideias inadequadas.*
(...) Espinosa diz: “Se os homens nascessem livres não formariam nenhum conceito de coisa boa ou má enquanto fossem livres”. Precisamente porque o bom se diz por relação a um modo existente, e por relação a uma potência de agir variável e ainda não possuída, não podemos totalizar o bom. Se hipostasiamos o bom e o mau em Bem e Mal, fazemos do Bem uma razão de ser e de agir, caímos em todas as ilusões finalistas, desfiguramos a necessidade da produção divina, e a nossa maneira de participar na potência divina plena. É por isso que Espinosa se distingue fundamentalmente de todas as teses do seu tempo segundo as quais o Mal não é nada, e o Bem faz ser e agir. O Bem, como o Mal, não tem sentido. São seres de razão, ou de imaginação, que dependem inteiramente dos sinais sociais, do sistema repressivo das recompensas e dos castigos. » **
Mas que não haja nem Bem nem Mal não significa que toda a diferença desapareça. Não há Bem nem Mal na Natureza, mas há bom e mau para cada modo existente. A oposição moral entre Bem e Mal desaparece, mas esse desaparecimento não torna todas as coisas iguais, nem todos os seres. (...) Há aumentos da potência de agir e diminuições da potência de agir. A distinção entre bom e mau servirá de princípio a uma verdadeira diferença ética, que se deve substituir à falsa oposição moral.*
Gilles Deleuze, Spinoza et le problème de l'expression*, Spinoza- Philosophie pratique**
Sem comentários:
Enviar um comentário