Ia à igreja por causa do reflexo dos vitrais. Os vitrais ardiam na incandescência da luz. Azuis, vermelhos, amarelos, violetas: incêndios translúcidos reflectidos nas paredes pesadas de pedra. Havia também um silêncio e murmúrios a cortar cirurgicamente esse silêncio: as rezas repetidas até ao cântico secreto, o estalido da madeira dos bancos sob as rótulas de quem se ajoelha, a cera das velas cedendo ao calor das chamas, o chiar das portas de entrada, o olhar dos santos fixando-se em cada crente, o cheiro antigo das talhas douradas, as pinturas sagradas envelhecendo em frestas.
Ia como quem precisa disso: dessa luz florida e desses silêncios quebrados.
A dada altura, apercebi-me de um homem velho. O homem entrava, dirigia-se convicto à pia de água benta, enchia com ela um copo largo de vidro (que trazia dentro do bolso direito do casaco de fazenda) e bebia-a de um só gole.
Surpreendi-o várias vezes. Ele topou-me a surpresa e um dia, num encontro ocasional à saída da igreja, enquanto arrumava o copo no bolso, disse-me na convicção dele: -"Bebo água benta para lavar as tripas." Respondi-lhe apenas com um sorriso encavacado. Os sinos tocaram cinco badaladas e nunca mais nos encontrámos. A água parada nessa luz florida e nesses silêncios quebrados.
1 comentário:
(a água parada a água inquinada.
as tripas é que a lavam.)
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