terça-feira, fevereiro 28, 2006

As criaturas de Walser, segundo Agamben

para a Madame Wœhringen

« II
Do limbo

(...)
Esta natureza límbica é o segredo do mundo de Walser. As suas criaturas estão irremediavelmente extraviadas, mas numa região que está para além da perdição e da salvação: a sua nulidade, de que tanto se orgulham, é acima de tudo neutralidade em relação à salvação, a objecção mais radical que alguma vez foi feita contra a própria ideia de redenção. Propriamente impossível de salvar é, de facto, a vida em que nada há para salvar e contra ela naufraga a poderosa máquina teológica da oiconomia cristã. Daí a curiosa mistura de velhacaria e de humildade, de inconsciência de cartoon e de escrupuloso rigor que caracteriza as personagens de Walser; daí, igualmente, a sua ambiguidade, que faz com que as relações entre elas pareçam sempre estar em vias de acabar na cama: não se trata de hybris pagã nem de timidez, mas simplesmente de uma límbica impassibilidade face à justiça divina.
Tal como o condenado liberto na colónia penitenciária kafkiana, que sobreviveu à destruição da máquina que devia executá-lo, eles deixaram atrás de si o mundo da culpa e da justiça: a luz que se derrama na testa deles é a luz – irreparável – da alba que se segue à novissima dies do Juízo Final. Mas a vida que começa na terra depois do último dia é simplesmente a vida humana. [p. 14]

VIII
Demoníaco

É bem conhecida a obstinação com que uma recorrente tendência herética defende a exigência da salvação final de Satanás. O pano abre-se sobre o mundo de Walser quando até o último demónio do Gehinnom foi levado para o céu, quando o processo da história da salvação se concluiu sem resíduos.
É espantoso que os dois escritores que, no nosso século, observaram com mais lucidez o horror incomparável que os circundava – Kafka e Walser – nos apresentem um mundo de onde o mal na sua suprema manifestação tradicional – o demoníaco – desapareceu. Nem Klamm, nem o Conde, nem os escrivães ou os juizes kafkianos, e ainda menos as criaturas de Walser, poderiam jamais figurar num catálogo demonológico. Se algo semelhante a um elemento demoníaco sobrevive no mundo destes dois autores, é mais sob a forma que Espinosa tinha talvez em mente, quando escrevia que o demónio é apenas a criatura mais frágil e mais afastada de Deus, e, como tal – isto é, na medida em que é essencialmente impotência –, não apenas não pode fazer nenhum mal, como, pelo contrário, é aquela que tem mais necessidade da nossa ajuda e das nossas orações. O demónio é, em cada ser, a possibilidade de não ser que, silenciosamente, implora o nosso socorro (ou, se quisermos, o demónio não é mais do que a impotência divina ou a potência de não ser em Deus). (...)
Por isso, não é tanto a inocência natural das criaturas que Kafka e Walser fazem valer contra a omnipotência divina, mas mais a inocência da tentação. Em ambos o demónio não é um tentador, mas um ser infinitamente susceptível de ser tentado. Eichmann, um homem absolutamente banal, que foi empurrado para o mal precisamente pelos poderes do direito e da lei, é a terrível confirmação com que o nosso tempo se vingou do seu diagnóstico. [pp. 31-32]

X
Irreparável

A quaestio 91 do suplemento da Suma Teológica tem por título De qualitate mundi post iudicium. Ela interroga a condição da natureza depois do julgamento universal: haverá uma renovatio do universo? Cessará o movimento dos corpos celestes? Aumentará o esplendor dos elementos? Que será dos animais e das plantas? A dificuldade lógica com que estas questões se deparam é a seguinte: se o mundo sensível tinha sido ordenado com o objectivo de garantir a dignidade e a habitação do homem imperfeito, que sentido poderá ainda ser o seu quando este tiver alcançado a sua destinação sobrenatural? Como poderá a natureza sobreviver ao cumprimento da sua causa final? A estas perguntas, a passeata walseriana na “boa e fiel terra” traz uma única resposta: os “campos maravilhosos”, a “erva rica de seiva”, a “água das generosas chuvadas”, o “círculo recreativo decorado com alegres bandeiras”, as raparigas, o salão de cabeleireira, o quarto da senhora Wilke, tudo será como é, irreparavelmente, mas isso será precisamente a sua novidade. 0 Irreparável é o monograma que a escrita de Walser imprime sobre as coisas. Irreparável significa que elas são entregues sem remédio ao seu ser-assim, que elas são, pois, precisamente e apenas o seu assim (nada é mais estranho a Walser do que a pretensão de ser diferente daquilo que se é); mas significa também que, para elas, não existe literalmente nenhum refúgio possível, que, no seu ser-assim, estão agora absolutamente expostas, absolutamente abandonadas. (...) [pp. 36-37]

XIV
Pseudónimo

Em toda a lamentação, o que se lamenta é a linguagem, assim como todo o louvor é, antes de mais, louvor do nome. Estes são os extremos que definem o âmbito e a vigência da língua humana, o seu modo de se referir às coisas. Aí, onde a natureza se sente atraiçoada pela significação, começa a lamentação; onde o nome diz perfeitamente a coisa, a linguagem culmina no canto de louvor, na santificação do nome. A língua de Walser parece ignorá-los a ambos. O pathos ontoteológico (tanto na forma do indizível como na outra – equivalente – da absoluta dizibilidade) permaneceu até ao fim estranho à sua escrita, sempre equilibrada entre a “casta imprecisão” e um estereotipado maneirismo. (Também aqui, a língua protocolar de Scardanelli é o mensageiro que anuncia com um século de antecipação as pequenas prosas de Berna ou de Waldau.)
Se, no Ocidente, a linguagem foi usada constantemente como uma máquina para fazer ser o nome de Deus e para fundar nele o seu poder referencial, a língua de Walser sobreviveu à sua missão teológica. Frente a uma natureza que esgotou o seu destino de criatura está uma linguagem que renunciou a toda a sua pretensão de denominação. O estatuto semântico da sua prosa coincide com o da pseudonímia ou do apelido. É como se toda a palavra fosse precedida por um invisível “assim chamado”, “pseudo”, “pretenso” ou seguida (como nas inscrições tardias em que o aparecimento do apelido marca a passagem do sistema trinominal latino para o sistema uninominal da Idade Média) por um “qui et vocatur...”, como se cada termo levantasse uma objecção contra o seu próprio poder de denominação. Semelhantes às pequenas dançarinas a que Walser compara as suas prosas, as palavras, “mortas de fadiga”, declinam toda a pretensão de rigor. Se existe uma forma gramatical que corresponda a este estado de esgotamento da língua, é o supino, ou seja, uma palavra que levou até ao fim a sua “declinação” nos casos e nos modos e está agora “estendida de costas”, exposta e neutra.
A desconfiança pequeno-burguesa em relação à linguagem transforma-se aqui em pudor da linguagem face ao seu referente. Este não é já a natureza traída do significado, nem a sua transfiguração no nome, mas o que se mantém – sem ser proferido – no pseudónimo ou no espaço entre o nome e o apelido. A carta a Rychner fala deste “fascínio de não proferir o que quer que seja de maneira absoluta”. “Figura” – precisamente o termo que nas cartas de S. Paulo exprime o que se extingue por oposição à natureza que não morre – é o nome que nela se dá à vida que nasce neste desvio. [pp. 48-49] »

Giorgio Agamben, A comunidade que vem, trad. António Guerreiro, Presença, Lisboa, 1993

1 comentário:

c disse...

danke schõn :)