sexta-feira, dezembro 30, 2005

Amizade


« Após muitos anos de abstinência não intencional da amizade, eu voltara a ter subitamente um amigo verdadeiro, que também compreendia as escapadelas mais loucas da minha cabeça realmente bastante complicada e, portanto, mesmo nada simples e se atrevia a entrar nas escapadelas mais loucas da minha cabeça, algo de que todos os outros em torno de mim nunca foram capazes, porque também a isso de modo nenhum estavam dispostos. Bastava que eu só muito ligeiramente aludisse a um tema, para que ela se desenvolvesse logo exactamente no sentido em que as nossas cabeças tinham de se desenvolver e não só no referente à música, a sua e a minha primeira e primacial especialidade, mas também a tudo o mais. Eu nunca tinha conhecido ninguém com um espírito de observação mais agudo e uma riqueza de pensamento. Só que o Paul deitava continuamente pela janela fora a sua riqueza de pensamento, exactamente como fazia com a sua riqueza monetária mas, ao passo que esta riqueza monetária em breve tinha sido deitada definitivamente pela janela fora e se havia esgotado, a sua riqueza de pensamento era realmente inesgotável; ele deitava-a continuamente pela janela fora e ela multiplicava-se (simultaneamente) de forma contínua, quanto maior era o quinhão da sua riqueza de pensamento que ele deitava pela janela fora (de sua cabeça), mais essa riqueza aumenta; é uma característica das pessoas que primeiro são loucas e por fim qualificadas de dementes o facto de deitarem (pela sua cabeça) cada vez mais e sempre de forma contínua a sua riqueza mental e simultaneamente a sua cabeça em sua riqueza mental se multiplicam com a mesma velocidade que eles deitam pela janela fora (de sua cabeça). Eles deitam cada vez mais riqueza mental pela janela fora (da sua cabeça) e ela vai sendo, em sua cabeça, cada vez mais e tornando-se, naturalmente, cada vez mais ameaçadora e por fim já não é suficiente o deitar fora (de sua cabeça) a sua riqueza mental e a cabeça já não consegue aguentar a riqueza mental que nela se vai incessantemente multiplicando e acumulando, acabando por explodir. Assim explodiu muito simplesmente a cabeça de Paul, porque ela já não conseguia deitar fora (de sua cabeça) na medida suficiente a sua riqueza mental. Assim explodiu a cabeça de Nietzsche. Assim explodiram afinal de contas todas essas loucas cabeças filosóficas, porque não conseguir deitar fora, na medida suficiente, a sua riqueza mental. Nessas cabeças organiza-se de facto de forma persistente e sem qualquer interrupção a sua riqueza mental com uma velocidade muito maior e mais cruel do que aquela que essas pessoas a podem deitar pela janela fora (de sua cabeça) e um dia a sua cabeça explode e elas morrem. Assim explodiu também um dia a cabeça de Paul e ele morreu. Nós éramos iguais e, no entanto, completamente diferentes. »

Thomas Bernhard, O sobrinho de Wittgenstein, trad. José A. Palma Caetano, Assírio & Alvim, Lisboa, 2000, pp. 37-39.

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