– Estávamos numa casa sem portas, apenas chão, tecto e campo à volta. Pessoas bêbedas e dementes riam, gritavam, dançavam descalças em transe. Ela deitada no chão duro, eu em sossego. E as nossas mãos procuraram tudo o que havia para inspeccionar, assim nos corpos.
- Sim, sim, estou a ver.
- Fazia calma ali, dentro do alvoroço em volta. Ela queria dar tudo mas tudo não se dá, de manhã estaríamos juntos na pose habitual e a proximidade seria distância, seria suja, seria quase comiseração. O amor é outra coisa, o contrário do medo, digo.
- Era gira, a gaja?
- Não é isso.
- Infelizmente, vários sentimentos envelheceram, o amor não é excepção. Encontra-se enfastiado, dengoso, insuficiente. As nossas fantasias sexuais são tão aborrecidas como um filme pornográfico de baixo orçamento. Falta-nos imaginação!
- Paixão, descontrolo da razão, olhar que hipnotiza, mãos que se tocam com magia, ser mais espirituoso, procurar relações entre as coisas que só os olhos apaixonados vêem, ter olhos para ver as coisas apaixonadas, crescer nessa exigência. No Banquete diz-se que o deus do amor herdara “o mesmo espírito ardiloso em procura do que é belo e bom, a mesma coragem, persistência e ousadia que fazem dele o caçador temível, sempre ocupado em tecer qualquer armadilha; sedento de saber e inventivo”.
- Mas hoje em dia, meu caro amigo, os voos são rasteiros, até mesmo ridículos, têm como piloto um ritual social neurótico, são perseguidos pelo incansável pirata do espaço: o vírus da solidão, e normalmente, em vez de estimular a criatividade, estupidificam. Platão está desactualizado.
- Achas que é impossível viver sempre intensamente?
- Amanhã já não vamos estar aqui, amanhã estas cadeiras estarão vazias e mantêm apenas a forma e o calor dos nossos corpos por uns minutos. Uns meros minutos. Prontas para o próximo.
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