Tudo começou no sofá, entre carícias. Eram as nuvens carregadas que assombravam os sete andares por cima do nosso, era uma mão por dentro da outra e o tom waits a cantar-nos ao ouvido as suas máquinas de ossos. Parecia que este mundo era bem melhor do que o outro. E depois veio a frase. Palavras desadequadas a querer inscrever o tempo quando os relógios param. A lembrar, somos estranhos, não conseguimos, nunca esquecemos, passados e futuros pesam, somos estrangeiros um e outro, um no outro. Veio a frase da estranheza, não troquei o teu nome - um lapso indesculpável entre amantes - foi frase ainda pior, uma falha na linguagem fundamental, para sempre a esquartejar a confiança. Um disparate este hábito da língua articular palavras e a sua falta de ponderação crónica. A frase que afasta, quebra o elo da ilusão, lembra o artifício escondido nas subtilezas.
Tinhas de vir com as palavras. Desculpa, é protecção, é vontade de nomear e dar a notícia ao mundo. Para quê se o mundo agora não interessa nada, só eu, tu e aqui. Falta de pontaria, não devia. I don’wanna, I don’t think so.
E tu disseste: o que é que isso interessa. E eu disse: nada. E passámos juntos um calendário no sofá apertado para quatro pernas.
Do sofá para a vida foi um instante. Vieram caixotes cheios de livros e cds, veio a ocupação disfarçada de bons modos que começaram rapidamente a ser ecos de outros tempos. A máquina de lavar roupa que é preciso estender depois, a cama a aquecer rápido, o diálogo a ganhar ao monólogo, as depressões a alternar com a euforia, o jogo de brincar aos casais, aos adultos. Bateram umas quantas portas no auge das discussões, o tom waits calou-se dentro da sua própria cabeça, às mensagens poéticas e arrulhos via telemóvel sucederam-se combinações a despachar, mas tudo se tornou tranquilo apesar da aparente desordem. Ainda há o calor de um copo de vinho tinto no jantar de tabuleiro ao som do portugal-camarões. E o rosto agitado com as oscilações dos dias e as idas ao café à hora de almoço quando não há mesa.
[Queria uma casa sem recheio, sem obstáculos a distraírem-nos do que nos levou ali aos dois.]
Agora sem pressa, de outra maneira, contigo aqui ao lado, mesmo ao lado íntimo. Sentamo-nos em tantos sofás alheios mas nenhum será como o primeiro, o do coração aberto, quase piroso nas revelações que guarda. Classe média e barriga de bem-estar, foi já grito de iniciação e de intempérie.
1 comentário:
que lindo texto
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