segunda-feira, maio 23, 2011

íntimos

– Achas que somos íntimos?

- O que é a intimidade?

- Tens aí um dicionário?

- (traz o dicionário e vê a palavra) Íntimo, situado muito dentro, aquele que é cordial, particular, doméstico, do âmago. Amigo do peito. Gostava que fossemos próximos.

- Então não podes estar sempre a castrar o meu gosto de planar. Tens de abrir ao máximo a tua percepção visual. Estar disposto a tudo, a aceitar todas as contradições. Assim posso ir embora e continuas meu amigo para sempre uma vez que trocámos tudo. Eu fico a saber o que tu querias dizer mesmo que não digas. Ainda que contes muitas histórias e uses muitas referências, palavras e teorias dos outros. Sei que queres tornar tudo isso uma coisa tua, exiges a tua singularidade. Queres que as histórias dos outros e a tua versão dessa história seja a memória que fica de ti em mim. E eu deixo.

- Percebo, queres que eu cometa o erro de abrir o meu pequeno coração.

- Deves regressar a tempos preciosos, usar a linguagem dos apaixonados e da poesia. Contar coisas grandes sem a censura da piroseira, sem medo de chamar as coisas pelos nomes e expor intimidades.

- Para quê? As pessoas não ouvem. Estão obcecadas com o seu caminho, o seu precário percurso. Não ouvem. Aliás nem apetece falar, contar coisas. Vamos calando cada vez mais, para sempre. Não ouvem, ou fazem aquele ar entediado, um bocejo, um olhar distraído, a cabeça a pensar noutras coisas, no que têm para fazer, no que vão dizer a seguir. Deixa de apetecer tudo, nada intersecta com nada. Ficamos a pensar o que já pensávamos e não há partilha nenhuma.

- Tu também és assim, não ouves e mal falas de ti.

- Por exemplo, conto-te que já fui para lá das nuvens, ao país onde as coisas não têm nome, e onde não há deuses, nem homens, não há mundo, só o abismo do fundo.

- Drogas?

- Também. Conto-te que gostava de ter uma mulher que ordenhasse vacas, tenho essa fantasia. Gostava de acordar, dirigir-me à porta da minha casa no meio do campo, bocejar a coçar os tomates, olhar em frente e ver a minha mulher com uma saia branca e ancas largas a ordenhar uma vaca, a sorrir para mim e a dizer “bom dia, querido”.

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