sábado, outubro 30, 2010

Lisboa

Lisboa é uma caixa vigorosa de histórias. Os passeantes nunca se cansam, há sempre um velho do restelo bêbado a gritar filhos da puta, anda cá cabrão, entre muitas frases desconexas. Há sempre um trauma de guerra na cabeça do bancário que atravessa a passadeira, há sempre uma menina de belas-artes a descer o chiado, com olhos grandes e claros presos às cores da rua, há nem sempre uma velha a espreitar, um arrumador de carros que não desejamos, e uma mulher nas ruas da amargura.
Ouve no metro as pessoas a comunicarem.
Quantas vezes é preciso afirmar “é assim” para que alguém nos ouça, e depois nada é definitivo, axiomático, mas apenas uma opinião.
Persegue a fixação pela cidade como lugar premonitório: as estranhas combinações que crescem nos pequenos gestos, encontros e coincidências. As mais belas histórias são as que nunca se escrevem, perdidas para sempre no fulgor do acaso. Da noite única e irrepetível.
Às vezes sonha que a noite é muito mais grandiosa e interminável, que o espaço da noite não é circunscrito a estas paredes amarelas dos candeeiros, que podemos passear livremente pelos murmúrios da noite, que ninguém nos ataca, que a noite é mesmo noite, transformadora. Que a noite não fosse ruído, que desaparecesse o vermelho dos olhos, que tu fosses meu amigo e não desconhecido com passado em conjunto, que soubesses quem eu sou, que não te embrutecesses, que não te matasses sem percebermos que isso era inevitável, que todos soubéssemos as dores de cada um.

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