Uma visita ao Tombua (antigo Porto Alexandre), cidadezinha portuária no Namibe, Angola. Ali se viveu da farta indústria pesqueira, e hoje as duas baías continuam a ser as balizas dos dias de tantas mulheres a carregar peixe. Miragem de silhuetas entre a lisura das dunas. Fileiras de casas idênticas de pescadores.
Há algo ali de apocalíptico, não é bem a paragem no tempo, é um assustador trabalho do tempo que tudo corrói e degenera. As forças do passado vincadas nas casas, numa arquitetura que foi ousada e experimental ali tão longe, o cinema ainda com o escudo do império, a estátua em honra dos pescadores - "obreiros do povo". A
No Tombua, as crianças são milhares. É um espaço - uma extensão de vida - entregue aos inocentes. Bandos e bandos de crianças por todos os lados, entre a areia, as casas e a praia. Por não haver padrões de consumo não conhecem o sabor enjoativo da fartura, das luzes das cidades e da vida tal como nós a desfrutamos e maldizemos. No desconhecimento de tudo isso, qualquer pequena coisa é um entusiasmo ou motivo de histerismo. Um pacote de sumo, ver alguém de fora, uma música.
Aquele porto, paraíso na terra tão agastado, com as crianças a correr à toa, em rodas e em brincadeiras de molecagem - a dança provocadora de abanar o rabo e bater palmas, a fazer piruetas enquanto gritam “me afirma” para eu filmar, a pedir bolachas e 'cinquentas', é uma desolação.
Olhos espectantes para qualquer movimento teu, sensação de a realidade de todos os tempos e lugares só ter existência naquela extensão de areia que circunscreve as suas vidas.
Foi a primeira vez que experienciei a terrível impotência de estar assim de um lado e não saber como chegar ao lado deles sem convocar relações de poder. O facto de ter dinheiro e comida no carro é um enorme tormento, pois ceder a uma fraca medida de espírito de qualquer gesto de caridade, despoletaria conflitos entre eles, e seria uma migalha tão ridícula como humilhante para ambos os lados.
Ver tudo isto junto a angolanos que estão mais do que imunes a esse tipo de comoções e problemáticas, ajuda a normalizar. Vamos masé acender mais um pica.
1 comentário:
Desemboquei hoje no teu blog. Gosto muito da tua escrita. Vou continuar a descobri-lo.
Parabéns Marta
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