terça-feira, abril 13, 2010

cidade, memória e violência


Regresso a Luanda após um ano e pouco. É ainda meio embaraçosa a proximidade, escrever estas linhas sabendo-me de caras para a cidade: contemplar as águas serenas da baía, redescobrir as pessoas que me são queridas, voltar ao ritmo acelerado, à surpresa constante e reconhecimento. Estes saltos no tempo de observação são fundamentais para, não direi perceber, mas ver a própria transformação da cidade. Como quem repara que, de um momento para o outro, o sobrinho deu um pulo imenso, facto invisível para a mãe que não lhe diz ao pequeno-almoço: “é pá cresceste muito desde ontem à noite!”.
Se nesta desde-sempre-confusa urbanização há coisas favoráveis que contribuem para o funcionamento e modernização, outras há que estão a fazer desaparecer uma certa ideia de cidade. Apetece registar tudo porque nunca se sabe por quanto tempo continuará a mesma composição, tal como nos apetece registar o momento único de uma reunião de amigos, cristalizado numa fotografia ou na mais comovida lembrança.
Os sinais do tempo inscrevem-se na cartografia da cidade cuja reformulação está em curso. Diz-se que a nossa pátria corresponde à nossa mais antiga memória. A arquitectura pode ser uma memória bem antiga. Antes da invenção do livro que começou a fixar a matéria do contador de histórias e o seu, mais ou menos bom, papo-furado, a arquitectura era uma das principais fontes de conhecimento da passagem dos tempos. Os edifícios reflectem também o momento que a sociedade vive ou viveu e já não se adequa. Há cidades em que se percebe que a estrutura do Estado é forte e a sociedade é fraca, em algumas cidades do leste europeu sente-se isso: os edifícios imponentes, uma arquitectura arrojada que esmaga o indivíduo. África sempre representou um espaço de liberdade e criatividade para os arquitectos europeus, uma catarse para os seus recalcamentos, o concretizar de experiências que lhes eram vedadas num país mais previsível.
A longevidade dos edifícios depende da nossa vida neles. Temos a certeza que haverá sempre gente a viver nos prédios, novos e velhos, de Luanda, porém, gente capaz de pagar esta alarvidade de rendas duvido muito. E a deteriorização do espaço vem da sua insustentabilidade.
Os espaços vão-se adaptando, numa lógica funcional. As mudanças de antes mercado, hoje shopping, antes cinema hoje sala de espectáculos, antes hotel, hoje centro de congressos, antes caixa de elevador agora quarto não são novas e acontecem em todo o lado. Tal como se fabricam e destroem heróis, de elogiados a diabolizados, também os edifícios não são imutáveis nem sempre valorizados. Devemos-lhes o valor de contar a história do que era e do que é, o património que se reclama, procurar o pensamento que se esconde por detrás do betão e a quem ele serve. Às vezes diz muito sobre o estado das coisas.
Se se exige dignidade e condições para a vida das pessoas dentro das casas, o mínimo que se pode fazer ao despossar as pessoas das suas casas é ter alguns cuidados. O método violento tem pautado nos últimos dias os desalojamentos de mais de mil habitações na cidade do Lubango, com escassas garantias de realojamento.
O trabalho de memória é um espelho indispensável para pensar o presente, sem isso perdemos as coordenadas, não sabemos quem somos, que tipo de cidade se está a tentar reconstruir e que vidas são arrasadas. A violência tem atravessado a História de edificação das cidades, mas não menos os métodos da sua degeneração.

1 comentário:

Dalaiama disse...

Um dia talvez volte à maternidade que me viu nascer :)