quarta-feira, junho 06, 2007

romper o silencio, fazer o luto

Todos os olhares se suspendem naquelas palavras – de Martin Luther King, citado por Miguel Francisco (Michel) –, naquela evidência que parecia quase escapar-nos: “Não são os gritos dos maus que me magoam mas o silêncio dos bons”. Michel decidiu ser dos “bons”, talvez o primeiro dos “bons” a quebrar o silêncio sobre o Maio de 77. Estava escrito desde 1985, mas foram precisos passar trinta anos para Michel publicar o seu testemunho da prisão num campo no Luena, em Nuvem Negra – o drama do 27 de Maio.
Escrever este livro e lançá-lo em Angola, Domingo passado, no trigésimo aniversário do 27 de Maio, é um acto de coragem e, como referiu o jornalista Reginaldo Silva na apresentação do autor, é preciso saber o que é Angola para saber o que é coragem.
Coragem é também duzentas pessoas se juntarem no Chá de Caxinde, um restaurante da Baixa de Luanda, para combater o silêncio. O sofrimento é indizível mas falar sobre a crueldade ajuda-nos a não repeti-la, e foi essa a mensagem final de Michel: “Nunca mais a barbárie na nossa terra”.
Há três anos que esta reunião para almoçar tem lugar na terra onde começou a “tentativa de golpe de Estado” liderada por Nito Alves, segundo a versão oficial, ou a insurreição popular, segundo muitas pessoas envolvidas. Foi aqui também que começou a repressão, que se alastrou depois às províncias. Durante o ano que se seguiu, continuou-se a prender e a matar, na altura do governo de Agostinho Neto. Há cinco anos saiu um comunicado do Bureau Político do MPLA que assume que a reacção à acção desencadeada pelos “golpistas” comportou exageros. Desde então, nada. No fim-de-semana dos 30 anos só dois semanários referiram o tema.
Luís dos Passos, presidente do Partido Renovador Democrático, lamenta a ausência de pronunciamento do governo que, “se pretendesse de facto a reconciliação dos angolanos, deixava as pessoas falarem livremente, com espaço na comunicação”.
Há uns anos, organizara uma romagem ao cemitério “km 14” prestando homenagem àqueles que, em Junho de 1977, para lá foram levados, fuzilados e imediatamente enterrados numa vala comum. Só participaram 25 pessoas na romagem, muitos não foram com receio. Para o militar que, aos 22 anos, mobilizou os populares do Zambizanga para a Rádio Nacional (sabendo que os cubanos iam carregar) e ficou escondido nas matas até 1990, “continua aberta uma ferida dolorosa”.
O que interessa agora é cuidar dos vivos, mas é preciso fazer o luto dos mortos. João Van Dunem – após o Maio de 77, foi trazido de Cuba para ser preso em Luanda – parece estar ali por razões muito íntimas. Adivinha-se nele a postura de quem refez a vida lá fora – primeiro em Portugal, depois em Londres, onde trabalha para a BBC. Em Angola, deixou o mistério da morte do irmão e da cunhada (José Van Dunem e Sita Valles), e mantém vivo o desejo da “discussão sobre os frágeis acontecimentos de 77 para se exorcizar os fantasmas e os medos.” Com os gestos delicados, quase tímidos, explica o quanto é sagrado para os africanos prestar homenagem aos seus mortos e como não saber onde estão e não poder enterrá-los lhes impossibilita o “comba” necessário. É um humanista de formação para quem o ressentimento não faz sentido, mas há alturas em que se sente uma “árvore sem raízes” pelo desaparecimento de muitos amigos e dos familiares.
Carvalho, que também esteve preso no processo de 77, durante 27 meses, lembra que há coisas legais a tratar que são urgentes: “Reconhecer que as pessoas morreram – quem, quantos e onde. Antes ainda de se pensar em penalizar os culpados, é preciso dar certidões de óbito aos familiares. Há filhos que só estão registados da parte da mãe, pessoas que não se podem divorciar. Depois resolve-se a parte política. O problema foi criado dentro do MPLA e é aí que tem de ser resolvido.”
Bastaria ouvir a música – em quimbundo, símbolos da independência – para perceber que a maioria das pessoas no almoço viveram aqueles acontecimentos. Mas também há no Chá de Caxinde quem não tenha vivido, quem não se lembre, jovens cheios de interrogações que querem perceber melhor este período que deixou tantas marcas e embaraços na sociedade angolana. Querem saber quem eram os “fraccionistas”, se eram “fraccionistas”, querem perceber como correntes ideológicas da mesma ideologia podiam abrir clivagens tão profundas. As respostas e as histórias são contadas com um sorriso nos lábios – enquanto se vai experimentando os vários pratos: funge, kalulu, cabidela –, porque só assim se podem contar muitas histórias em Angola: a rir para não chorar.
Já passaram 30 anos. Ainda há quem reviva o desespero da simulação de um fuzilamento. “Tenho sabido lidar com isto, porque convivo com pessoas que viveram o mesmo”, continua Carvalho. “Às vezes estou mais receptivo, outras fragilizado, com raiva, emoção, e não consigo falar.”
Há uma comoção que atravessa as pessoas ligadas ao 27 de Maio pelas mais variadas razões: a cumplicidade que só a dor e o mistério perpetuam por três décadas de não esquecimento. Nesta grande família reunida - ex-prisioneiros, amigos, familiares das vítimas, filhos de pais falecidos, e sobreviventes de uma crueldade ímpar -, o silêncio era mais para ouvir e não para calar.

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