«Desde a sua mais tenra infância, Cincinnatus, compreendendo o seu perigo por um estranho e feliz acaso, conseguira esconder cuidadosamente uma determinada peculiaridade. Era impenetrável aos raios dos outros, e por isso produzia uma bizarra impressão quando baixava a guarda - a de um obstáculo escuro e isolado neste mundo de almas transparentes umas para as outras; aprendeu no entanto a fingir transparência, utilizando um sistema complexo de ilusões ópticas, por assim dizer; mas que se esquecesse de si um momento, que permitisse um lapso momentâneo no autocontrolo, na manipulação das facetas e dos ângulos astuciosamente iluminados segundo os quais expunha a sua alma, e o sinal de alarme tocava imediatamente. No meio da excitação dum jogo, os seus coetâneos desertavam-no subitamente, como se sentissem que o olhar lúcido e as veias azuis das têmporas não passavam dum embuste engenhoso e que na verdade Cincinnatus era opaco. Às vezes, no meio de um silêncio repentino, o professor, na sua perplexidade desgostada, reunia todas as reservas de pele à volta dos olhos, fitava-o longamente, e dizia por fim: - Que se passa contigo, Cincinnatus? - Então Cincinnatus recuperava o controle, e apertando o seu próprio eu contra o peito, depositava-o em lugar seguro.»
Vladimir Nabokov, Convite Para Uma Decapitação, trad. Carlos Leite, Assírio & Alvim, 2006, pp. 24-25
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