« É em meados de Fevereiro [de 1948] que Marie-Louise Michaux é vítima de um terrível acidente – “Preparavam-se os dois para tomar o caminho do Cairo, prometendo ir até Bagdade e Teerão. Debatiam-se pelos seus vistos e bilhetes quando o acontecimento caiu sobre eles.” (Henein a Calet, 29 de Fevereiro). “Um acidente. Grave. Muito grave. Tocando uma pessoa que me é próxima. Pára-se tudo. Não tem grande sentido, o real, o outro real, o real da distracção, que não tem que haver-se com a Morte.” [Émergences-résurgences] Segundo os testemunhos, por vezes ligeiramente diferentes, de Micheline Phankim, com quem Michaux confidenciou bastantes anos mais tarde, e de Marianne Rusen, a amiga de Marie-Louise, os factos são os seguintes. Durante uma ausência de Michaux, que tinha ido a Bruxelas buscar o dinheiro da herança do seu irmão, Marie-Louise Michaux encontra-se em sua casa. Voltava de um serão em que uma vidente lhe teria predito um acidente horrível. A predição poderia igualmente ter sido dois dias antes. Seja como for, ela participa do acontecimento. Marie-Louise acende a lareira, ou um radiador parabólico. A sua camisa de noite ou o seu robe em nylon incendeia-se. Marie-Louise precipita-se para abrir a janela, uma corrente de ar incendeia os seus cabelos, mas consegue enrolar-se num cobertor. Fica queimada em segundo grau e, em certos sítios, em terceiro grau. Os bombeiros estava já no local quando Marianne Rusen chegou. Morel Fatio, o seu médico, tratou Marie-Louise numa clínica da Rua Franklin, em Paris, no XVI Bairro.
Michaux escreve a Paulhan (s.d.): “Marie-Louise está sempre em completo sofrimento. Não há um sítio nela, dentro ou à superfície, em que encontre repouso. É atroz. / Valente, bastante altiva diante dos seus males. / Mas pergunto-me, esgotada como está, se vai poder aguentar até ao fim das duas semanas perigosas que se seguem a esta.” E a Supervielle, a 3 de Fevereiro, “Não se pode saber a que ponto tudo aquilo é atroz. / Mesmo quando lhe descobrimos um dia o rosto, ela não procurou ver-se. Os sofrimentos ocupam tudo nela. / Desde há dois dias que podemos considerá-la salva. / As suas mãos e braços totalmente imobilizados e ainda por bastante tempo (queimaduras do terceiro grau) deixam-na na inteira dependência de outrém, o que não me deixa tempo nenhum até à noite.” Escreve também a Bertelé, pedindo-lhe que telefone ou à meia noite, ou muito cedo de manhã: “Permita-me falar cinco minutos de outra coisa que não do atroz à minha volta, Nada mudou, M. L. o seu sofrimento eternamente repetido e que vai durar sem descanso dias... e dias e de que não nos podemos desprender.” [...]
Michaux contou em Émergences-résurgences o recurso imediato que encontrou na pintura ao longo dessas semanas torturantes: “Com a pluma, irritantemente rasurante, marco as superfícies para devastar em cima, como devastado passou todo o dia em mim, fazendo do meu ser uma chaga. Que deste papel venha também uma chaga!”
A 19 de Fevereiro, apesar de alguns dias de uma melhora passageira [“Ao fim de algumas semanas de tratamento, começávamos a considerá-la como fora de perigo, quando bruscamente não sei que desenvolvimento fulminante a levou em poucas horas” Henein a Calet], Marie-Louise Michaux morre às 5 horas da tarde na clínica, de uma embolia pulmonar provocada pela suas queimaduras. Paulhan escreve a Ponge: “Marie-Louise Michaux morreu; mais do que das queimaduras, da cura : transfusões de sangue cada dia, como se para um jovem aviador. Mas o seu coração cedeu.” A 21, Bertelé anota no seu diário: “Esta manhã, ao telefone, Michaux, de voz quebrada, quando lhe pergunto por notícias da sua mulher: ela morreu. / Veio ver-me, um pouco depois, no meu quarto. Já vestido de negro, e mais seguro de si do que esperava. [...] Falamos de Marie-Louise. E M. fala já da sua sobrevivência [survie] nele – e eu percebo que ele ‘safar-se-á’ pelo seu espiritualismo e pelas suas tendências místicas. No entanto, diz-me: ‘tirava toda a minha força dela desde que ela estava doente... ou seja, do esforço que devia fazer para a ajudar, apoiar... agora encontro perante mim apenas o vazio... não tenho mais nada a manter... perdi o que ela me dava: o seu amor: era amado...’ [...] No entanto, diz ele, não sou bom... e de cada vez que entrava no seu quarto retirava-lhe metade do seu sofrimento...” Bertéle acrescenta: “a sua necessidade essencial: a eficácia, tinha encontrado uma razão: era eficaz [cf. «Através mares e desertos», Doze nós numa corda] em relação a Marie-Louise”. A 23, Paulhan escreve a Étiemble: “Que vida estranha, desde que a conhecemos: 2 anos de suicídio, 8 anos de tuberculose, 1 mês de queimaduras... (Tudo isto assaz escrito antecipadamente na obra de HM.)” A 29, Bertelé anota ainda no seu diário: “Regresso de Michaux a Paris depois de uma viagem de três dias a Lyon que deve ter sido terrível – enterro de Marie-Louise. Primeiros actos de M. vindo de enterrar a sua mulher: foi à expos. Klee, em seguida almoçámos juntos. Depois do almoço, vai comprar uma mesa de desenho: vai, diz-me, pôr-se a trabalhar...”
Março. [...] A 10, Bertelé anota uma conversa telefónica com Michaux: “A minha saúde espanta-me... já me reinstalei na vida... tenho vergonha... sinto que estas partes de mim querem viver... recupero a minha autonomia...” e fala-me um pouco de M. Verdoux de Ch. Chaplin que tinha acabado de ver.” A 11, Michaux escreve a Gide: “Como é gentil em fazer sentir a sua presença junto a mim neste momento. Sobre o sofrimento, sobre a afecção, aprendi algumas coisas nesta vida, e sobre o amor, que talvez não tivesse suficientemente em conta. / Mas sobre o que é a morte, infelizmente, não sei mais do que se tivesse acabado de nascer.” A 14, Calet confidencia a Henein: “Penso muitas vezes nela. Hei-la entrada de facto no estranho mundo de Michaux.”
Raymond Bellour et Ysé Tran, «Chronologie (1947-1959)», in Henri Michaux, Oeuvres complètes, II, Gallimard, Paris, 2001, pp. XIV-XVII
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