Depois de uma tarde, de uma noite e quase madrugada de trabalho, concentração contínua sem descanso, acordei tão profundamente cansado, nem me ouvia lá longe. Ainda ensonado, afundado no leito, enumerava as estranhezas e punha o corpo em concordância, procedimento habitual. Mas a evidência era de que o mundo não era o mesmo doutra maneira. Ideias insuspeitas e de impertinência vã surgiam a todo o momento, não convidadas, provocando embaraço. As imagens não guardavam o mesmo efeito, nem o esplendor dos corpos qualquer bondade. Eram apenas carne húmida levada em passeio. Que diferença para as variações da disposição, com que podemos bem, mesmo se inconvenientes. Já uma cabeça cansada é um perigo. Pois nem imaginamos quão frágeis são os laços que nos ligam a tudo isto à volta. Têm as coisas tal força. Dificilmente as concebemos fugidias, verdadeiramente fugidias, de inalcançáveis, de incompreensíveis, verdadeiramente incompreensíveis, mortas para a nossa idade. Não falo dos outros, porque assim como assim, nesta escala, estão sempre a meia-distância. Enfim, não é sensação que se recomende ver o mundo fugir, ver a nossa cabeça fugir donde foi pregada, donde inspira e expira. Não me confundam, não pretendo transformar uma mera desarrumação num caos grandioso. Tenho um pouco de prudência aprendida a custo e conheço de ouvir dizer as intempéries da loucura, tudo indica sublimes. Tratem-na por tu e verão. Come-vos a casa o prado a língua, em belas linhas. Deixo portanto bem dito, ouçam bem, esta ânsia de acordar de novo com ela recuperada, à minha nobre humilde cabeça. Pode um dia dar-se o caso de ela não voltar. Assim, última vontade sempre em acto, para que saibam que cego escolhi o mundo, estou aqui.
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