sexta-feira, março 31, 2006

Árvores no café e um homem quase louco

Sento-me. Peço um café cheio (sempre com a ideia de que mais vale cheio do que pelo meio, o fundo mais longe). Trago o cabelo desalinhado. A roupa pegada ao corpo: transpiração doentia de um inverno que não desiste. O pescoço intermitentemente frio. Os pés apertados numas botas pretas pesadas velhas pretas. Bebo o café em três goles: pequenos, rápidos, quentes. Fica um travo amargo a desfiar a garganta triste. E de repente há um homem que me assalta com a descendência do rei de Leão e Castela e o triângulo de uma invasão possível da Europa. E a Rússia e a Suécia e a Prússia. A diagonal, o norte de Inglaterra e África e uma invasão generalizada árabe. E daqui ali é como daqui a Leiria, e daqui ali é como daqui a Almada. E uma defesa de Portugal só com submarinos. Qualquer dia somos apanhados de surpresa. As mulheres têm cada vez menos filhos e são aliciadas por jóias. Ninguém pensa. Tento concertar o penteado, desalinho ainda mais. Ponho a écharpe para disfarçar o mal-estar cada vez maior. O corpo secou. Os pés deixaram de pensar, já não incomodam. O travo amargo do café desce com menor acutilância pela garganta abaixo (engolir em seco distrai). Tento fugir ao homem que já vai no Egipto, depois de ter passado por Marrocos. E a China e os governadores e as mulheres que vão para a cama com eles. Árvores genealógicas descontroladas. Na Sicília e o Islão e as chinesas de novo. Uma coisa horrorosa. Quais Estalines, quais Hitleres, nada se pode comparar a estes tipos. Árvores genealógicas descontroladas. Árvores sem controlo nenhum. O caos, o caos e as árvores que temos dentro de nós todas abatidas, o sangue feito em papas de floresta. O homem estende-me papéis com as ditas descendências, ligações e cruzamentos, nomes, relações e insígnias. Letras rabiscadas a preto em folhas brancas grandes dobradas ao meio. As folhas amachucam-se no gesto convicto e contido dele. Livro-me do homem. O travo amargo já dissolvido no estômago. As árvores dentro de nós de facto todas abatidas e o sangue feito em papas de floresta e o papel que se gasta à custa disso.

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