quarta-feira, março 15, 2006

doçura, direito


(...)

adormecia de um acordar desgostoso, assim espesso, é quase manhã
não estou certo do medo, deito-o à rua
volta para se aninhar, no meu calor
parece que o temos todos, puta temperatura
(...)

partilhamos a ansiedade, por imprecisa natureza
aquela subdivide-se em milhares
linha profunda, divide-nos em nós, dentro
linha recta, diafragma negro
que corta o fôlego, boca-a-boca infinito
com a morte? quem dera não
dera o fígado, lento acompanha o passo

(...)
apenas
desamados, expectantes de surpresas, sustos de afectos
reservamo-nos, surdina e neblina
desmaiados de amores soporíferos
e voltamos as palmas das mãos

(...)
esta vontade audaz, malabar de soçobramento
na solidão improdutiva, no desaparecimento utópico
jejum grandioso e intocado, trespassado de água
e em contínua sede

(...)
imagina uma vida assim
toda ela grandiosa, suspensa na indecisão
esperando, lutando, mendigando a sua resolução
o machado que corta a cabeça
uma delas agora examinada
da imensidão das que caem, infinitas
que ser nos pusemos a ser?
cabeças caindo, caindo
cestos cheios guardados
caves
(...)
para um pouco de vida de cada vez
para não engolir de repente
engasgamo-nos, os nervos presos entre os dentes e o estômago
goelas cima abaixo
a língua que se debate, furiosa
acaba também por parar
(...)
um luto
seguido de uma mudança de pele, intermitente mas rigorosa
síncrona chegada do inverno

(...)
vacúolos de solidão e de silêncio
deitados no lençol que oscila
doçura de não ter, direito de não ter
nada a dizer
(...)


(2003)

1 comentário:

Anónimo disse...

e depois voltamos as palmas das mãos