quinta-feira, março 02, 2006

A cidade tensa


É uma luz branca, a do amanhecer em Luanda. Uma luz que realça os castanhos, os verdes e ocres dos edifícios. Dos barracões de zinco um rádio roufenho sacode já as canções potentes que competem com o grito dos cobradores “mutamba-mutamba-aeroporto-aeroporto”. A cidade mantém por pouco tempo uma serenidade ensonada, que será caos de trânsito e de outros mambos. Como as pessoas que descem dos bairros periféricos para o centro, é um ser em movimento, um frenetismo de ondas.
Percorro as ruas cheias de pó com os candongueiros em fila a acompanhar os passos. Nos arredores do mercado dos congolenses são muitos os objectos, as gentes, a informação, uma sumptuosidade ditada pelos tecidos majestosamente assentes nas ancas e na cabeça. Sumptuosidade. Nos gestos de comer e de tratar dos filhos. Na forma como os objectos circulam nas montras ambulantes e fazem a coluna tão direita e o rabo tão imponente. Na voz e no riso que parece prolongar-se sempre.
Cidade tensa, as coisas são para quem for mais forte. O pessoal insulta-se e diverte-se com as ameaças: “vou lhi bater!” Na luta para apanhar o candongueiro vinga a lei do empurrão, não interessa quem chegou primeiro, não interessa se é mais-velho, moça, grávida, criança ou mutilado. Entro. Um kuduro duríssimo tá a bater: “ou mi mata ou quêêêê!!!”
Os princípios bairristas passam pela coscuvilhice entre vizinhança e a defesa das ruas, dizem-me os canos à mostra a serem remendados por várias mãos. As soluções e reacções têm de ser imediatas: contornar os esquemas, encontrar novas respostas. As relações também nunca estão consolidadas, nunca se sabe onde ficámos, qual é o grau de confiança.
Esquece o leitinho da Europa, esquece toda essa mama de orientação da corja das cidades. Estou num país tecnocrata que acorda para a sua história e memória depois de violentações ao equilíbrio das pessoas. Os herdeiros desse desequilíbrio são uma juventude empolgada, disponível, que ri muito e gesticula num recontar teatral das situações fodidas. Aqueles que pegaram em armas e os outros que também sentiram o medo, afogam-se agora em cerveja e petiscos. Sem ideologias, ó camarada.
Mas há o mar, sempre o mar por perto a lembrar que há distâncias entre as coisas. Um azul chumbo, uma luz de pedra como solução. A paz da Ilha de Luanda onde um mergulho a meio do dia refreia as possíveis acelerações. E as comidas maionésicas dos bares chiques junto à praia, com ambiente tropical salpicado por pulas de caipirinha na mão e saias leves e coloridas a combinar com a salada de marisco.
E depois os lugares nocturnos de desolação onde a voz do Bob Marley se faz ouvir como esperança mil vezes retomada, entre as paredes amarelas com naprons e duas garinas de olhos presos à novela. Enquanto comemos o peixe exaltadamente na Chicala e as cervejas chegam mais rápido que o pensamento, entra pelo quintal uma prostituta com as mamas quase à mostra a cantar um música de dor de amor. Também se sofre de amor.
De regresso a casa a interminável subida pela penumbra das escadas, no prédio onde em cada patamar podem acontecer coisas: mulheres a trançar o cabelo, galinhas a serem decapitadas, churrascos, lavagem de roupa, crianças a brincar que querem entrar na tua casa, namorados adolescentes, reuniões de vizinhos. A caixa de elevador, que fora depósito do lixo para os que ocuparam as casas, pode servir de cubículo também.
Tantas vezes falta a luz que a cerveja tem de se beber rápido para não aquecer. A noite para dormir debate-se com ataques de mosquitos palúdicos. O cansaço invade-nos e, nos prédios altos de Luanda, vive-se um entusiasmo às vezes maravilhoso. Os cânticos ecoam entre a cachaça, a cerveja, a liamba e a promessa das províncias. Havemos de partir por essas estradas, no dia em que os buracos já não fizerem doer o rabo.
Tudo isto não passa de uma banalização do cenário. Aquilo que era espanto e enigma, e quase perigoso por desconhecido, é agora, apenas e felizmente, uma cidade com as suas particularidades.

Sem comentários: