Aos 29 anos, a mesma idade com que Buda abandonou mulher e filho e uma vida de luxúria para escapar aos constrangimentos materiais e procurar a meditação, eu aterrei na ilha. Não trouxe grande coisa, uma massa glaciar dentro da cabeça, alguma arrogância, alguma humildade, os dedos abertos para deixar o vento passar e um saco de outras areias para fundir com estas. Umas quantas excentricidades não partilháveis. Umas dores pequeninas e todas bem curadas. A semente da alegria. Seria este um cenário ideal, no conjunto de pontinhos minúsculos que combinados fazem uma coisa grande e reconhecível, com estética.
Antes de aterrar definitivamente, a espera no aeroporto permitiu-me transitar entre o tempo de uma e outra coisa, um antes e a redoma do presente. Sabia que, quando chegasse, as certezas vacilantes iriam assentar como uma poeira resistente apenas até um próximo sopro as roubar.
Gostei de perceber-me desde logo num sonho de luz. Uma nitidez exagerada que não permitia esconder-me debaixo da cama. Tudo estava a descoberto. Decidia apenas que fazer de toda essa luz. Não era já o tempo em que a sífilis levava à paralisia, cegueira, insanidade e morte. Nesta ilha havia sistemas de alta informação, hospitais bem equipados, formas de emancipação, gente a debitar manifestos culturais. Questionava-se vontades, adiava-se muito. O tempo ganhava novos contornos. Eu entrava devagar e discreta neste canto do mundo onde os corações podem subitamente deixar de bater. Andei vagarosamente, a descer e a subir ruas, a conhecer caminhos para estipular-lhes pistas. Observei pessoas fartas da verticalidade que se abandonavam ao chão. Pessoas deitadas no chão nas ruas e passeios e isso era a coisa mais natural do mundo. Muitas vezes eram crianças que tapavam os joelhos com as t-shirts grandes demais da caridade e ali ficavam na posição fetal. Apesar do suposto espectáculo hediondo, nunca senti em ninguém uma solidão profunda, daquelas que retiram o sorriso dos lábios de manhã.
Um dia entrei numa taberna com balcão de alumínio constantemente a acumular restos de bebida, gorduroso até à próxima passagem do pano. Descontraidamente peço um café e olho para cima, está lá uma televisão com tons verdes, tinha rebentado uma guerra. Eram umas cinco horas na ilha, havia crianças a regressar da escola, com saias curtas e passos alegres. No país da guerra era já noite profunda.
Soube que aqui a paz estava cristalizada e tornava tudo impermeável.
Soube que de onde eu vinha se passava do verde ao podre.
Sou o produto de um orgasmo colonial, confirmou-me o pintor.
Observei também as pessoas reunidas em grupos vistosos, recolhidas da confusão, a burguesia em que o brilho das peles deixa pressentir o perfume ocre do dinheiro e outros mais suaves. Uma certa languidez e preguiça. Música de hotel, coisa ligeira onde o tempo é sempre démodé sem transposição e actualização na história. Reconheci aquela pose de férias, comum em todo o lado, a pose do lazer, de desleixar o pensamento. É certo que tem sempre charme chegar mais tarde, pelo ganho do olhar de todos. O entretenimento alimenta o mecanismo e os seus códigos dão-lhe conivência.
Era tempo de pintar retratos e tentar encontrar-nos lá dentro.
Havia uma mulher vestida de leopardo, fato com alças de costas nuas, bem justo a ver-se o rabo. Ele de fato de treino azul com uma risca branca. Estavam identificados. Gostava de ser uma dessas pessoas com uma ligação singular à realidade, aos cenários de aparente nível zero mas com tantas evidências.
E tu? Viste as crianças cuja única visão são as cabras nos montes e campos de futebol no pó? O grito de uma mãe para ir aos recados. Um pai bêbado e desempregado. E o mar imenso que os aparta. Que os impele a sonhar o desconhecido. Com que imagens se sonha o desconhecido?
Deixei-me ficar à espera que as coisas viessem ter comigo. E as pessoas foram falando, abrindo as suas janelas. Havia medos mas também se faziam afirmações categóricas. Eu, eu, eu. Nós, nós. Somos assim.
O desejo era o de abrir espaço para a palavra. Que se contaminasse a vontade de falar, escrever, a denúncia e o canto. Como se nesse desejo os adolescentes encontrassem razões para suspender o sofrimento. Ou que o brilho dos seus olhos dissesse nunca esqueceremos e ganharemos coragem. Polir-lhes o coração com apelos para que olhassem acima das copas das árvores.
E havia a desolação da terra. Olhares para o nada, para o vazio da noite nos cimos dos terraços, para as noites cansadas e baças como pessoa velha. Do lado de dentro a música estridente, a alegria fácil, a dança quente. Mas o olhar fugia nesse momento de confronto no debruçar à varanda para aquela terra pequena, que é o destino de uns poucos, e onde se equaciona um futuro que é apenas pressentimento, às vezes projecto, e se vai ficando por ali naqueles rituais a adiar a hora da partida.
Entretanto o sossego estendia-se e o mar lançava os mais belos e coloridos boquês de flores. A simpatia amansava as fúrias, mas apedrejava-me as convicções.
Sabia que quando se diz “já não vamos cá estar quando…” morremos já um bocadinho.
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