segunda-feira, janeiro 02, 2006

O parto da Vanda



« Vanda – Tenho que ir ao posto médico.
Ah! Mas não tenho cartão. Não sei onde é que o meu marido pôs.
Aquele cartão...
Ventura – Os portugueses agora tomam dinheiro de qualquer maneira.
Vanda – Hã?
Ventura – Eu disse que os portugueses agora querem arranjar dinheiro de qualquer maneira.
Vanda – Tem que ser.
Ventura – Já isso sem cartão não dá.
Vanda – Não, não dá. Mas o meu marido é que tem. Porque a minha cabeça não dá. Eu guardo uma coisa aqui e depois não me lembro de onde pus.
Ventura – Pois é.
Vanda – Tens que cortar as unhas.
Ventura – Vou pedir hoje à Zulmira que me corte antes de ir.
Vanda – Toma, este é grande dá para cortar.
Senão fica feio. Eu não gosto de unhas grandes.
Ventura – Eu deixo crescer porque comprei um corta-unhas dei à Zulmira e ela perdeu-o.
Vanda – Ah! Claro.
Burrice. Cortas, senão ficas feio, por causa do rapé que te suja as unhas todas.
Ventura – Sim.
Vanda – Tu tens... tens que estar limpinho... não custa nada.
Ventura – Pois é.
Vanda – Quando fui parir a minha filha, já tinha mais de três dias cheia de dores. Nas costas. Só dores. Que eu dizia "Ai! Ai minha mãe! Ai não aguento mais. Mas eu não estou na altura de ter a menina". "Amor, vê lá. Vê lá. Não tenhas a menina aqui, se estás doente vamos ao hospital". Três dias cheia de dores e eu não queria ir, tinha medo.
Era um Sábado. Tive a minha filha num sábado. Ela pôs a mão e disse, "A senhora já não sai daqui". E eu disse assim: "Diga? Não, tenho ainda de ir para casa, minha senhora. Não saio daqui porquê?". "Ai, a senhora não sai daqui não, porque já tem a cabeça da criança cá fora".
Eu disse assim, "Oh! Minha senhora, mas eu estou aqui sozinha. Então, eu tenho que ir buscar o meu marido, que eu não sei o número de telefone".
Ela disse, "A senhora já não sai daqui. A senhora diga a sua morada que alguém lá vai". E eu afrontada, ai minha mãe! Dores que começaram a dar-me de 10 em 10 minutos, uma dor. Ui a minha mãe!
E eu disse assim, "Ai! Olhe estão-me a dar muitas dores". Depois vieram mais apertadas, de 5 em 5 minutos, "Olhe, ai agora ainda está a ser pior".
"Então. A senhora está a ter a sua criança, e você nem ... venha cá".
Fui para a sala de parto, ... eles puseram-me na sala de parto e puseram-me uma coisa aqui na barriga ... vê a barriga que eu tinha é esta que tenho agora. Eu não tinha barriga nenhuma, a que eu tenho era a que eu tinha da minha filha. Eles puseram-me uma ... que é com CTG ... com um cinto. E eu, "Olhe. Olhe, tire-me isto, que esta merda está-me a doer muito, tire-me isto"."Oh! Minha senhora mas isso não pode ser, porque isso é para se ouvir o coração da criança.", "Tou-lhe a dizer para tirar, se a senhora não tira, eu arranco já isto", "Oh! Minha senhora! A senhora não pode tirar.".
Quando eu vi que não podia sair eu disse-lhe, "Olhe. 0 meu marido está lá fora, vá lá chamá-lo", "Então, a senhora estava sozinha e agora já lá tem o seu marido?". "Está, está. Vá lá chamá-lo que ele está lá fora.".
"Como é que se chama o seu marido?". "Paulo Jorge.".
Ela chamou-o e ele veio, "O que é amor?". "Ai que eu já não posso estar aqui. Estou cheia de dores. Ai, amor ajuda-me que eu não aguento.". Veio um indiano, o meu marido e mais cinco. Eles eram sete.
Quando aquele indiano subiu-me para cima porque quando eu fazia força, a minha filha vinha para aqui. Custou mais porque ela era ratinha, se fosse daquelas grandalhonas ela saía logo. Mas as pequeninas sobem todas para aqui. Oh! Minha mãe! E o médico, "Ai, pá! Tenho que fazer qualquer coisa que esta mulher já não aguenta.".
E os homens todos em cima de mim, com os joelhos, com as mãos. Ele fez-me assim, e empurrou, empurrou e empurrou até que a menina veio, Uouuh! Quando a criança saiu nem vi a cara dela, se era menino ou menina, nunca mais vi a minha filha. E eles disseram, "A senhora já não sai daqui, a senhora vai ficar internada, porque a senhora está doente."
"Tou doente o quê? Oh! Suas putas, eu quero me ir embora.".
E o meu marido dizia, "Está calada. Olha, a descompor as mulheres. Está calada, tens que ficar cá.".
E eu, cosida por dentro e por fora, nem andar podia. Se eu pudesse andar, eu safa do hospital ... Safa mesmo! Eles puseram-me num quarto... primeiro puseram-me numa maca, eu e uma rapariga que pariu ao mesmo tempo que eu, uma rapariga nova também. E nós não podemos ter almofada, temos que estar direitas. Por causa do sangue. Para que o sangue circule.
Ventura – Sim.
Vanda – Então, eu punha a mão assim e dizia, "Olhe estou cheia de fome.".
"A senhora não pode comer.". "Oh, minha senhora, traga-me qualquer coisa que eu estou cheia de fome.".
A rapariga ao meu lado a dizer: "Olha, tu não podes comer, deixa-te estar deitada. Sabes que o sangue pode subir-te à cabeça".
"Olha. Se subir à cabeça ainda era melhor.". Fiquei afrontada, depois eu não podia andar, por causa das costuras. Oh, minha mãe!
Ao fim de uma hora e tal, eles a empurrarem a minha maca, eles a levarem-me não sei para onde. Mas corri o hospital da Amadora todo, na maca.
Ventura – Sim.
Vanda – O médico a empurrar-me. Fomos,...de elevador e não era ali, fomos a outro e não era ali. Fiquei num 6º andar. Eu sozinha, dentro de um quarto. Pela alma da minha mãe, pela saúde da minha filha, pela alma da Zita. Era assim, um quarto, eu sozinha. E chorava todos os dias. Oh! Minha mãe! Eu tinha só uma televisão. 0 médico, eu não lhe via o rosto, eram só os olhos. Eles traziam aquelas máscaras.
Ventura – Sim.
Vanda – E eu perguntava, "Olhe. Mas porque é que trazem isso? Eu estou assim tão mal? Estou assim tão doente? Que é que eu tenho?".
"Não. A senhora não tem nada. Só que a senhora tem uma mancha no pulmão e temos que prevenir, pela sua saúde e pela nossa.".
E eu então chorava. Ai, minha mãe! E um dia disse assim, "Não me tiras daqui, amando-me pela janela abaixo. Eu vou-me matar.", Como aquela mulher que caiu ali ontem.
"Eu mato-me.". 0 meu marido, aflito e com medo. Ele foi e disse assim, "Olhe. As senhoras vejam lá, porque ela diz que se mata, e... Ou com o oxigénio porque eu tinha uma cena de oxigénio.
Se eu ligasse aquilo o oxigénio ficava... tipo gás.
Ventura – Sim.
Vanda – Eu, sozinha num quarto, sem janela, sem porta, sem nada com tudo fechado, eu morria.
Disse assim, "Eu abro isto, quando vierem cá ver eu estou esticada. Amor leva-me, pede alta, amor. É que eu já estou boa. Amor eu quero me ir embora.". Eu chorava todos os dias.
Então um dia, "Ai, as senhoras não me mandam embora, então está bem.". E disse assim, "Olhe, a minha filha está onde?". Perguntei à minha médica, uma espanhola. Ela disse-me, "Ah, a sua filha está na estufa, está no berçário, a senhora não a pode ver por enquanto ...".
"Não posso ver a minha filha? Posso.". "Não pode.".
Deixei-a sair, pus a minha máscara, pus aqueles sapatos de papel, que eles têm. Sabes quais são, aqueles chinelos de papel?
Ventura – Sim, sim.
Vanda – Calcei-os, e quando me encontraram, já estava junto da minha filha. "Não posso vir à minha filha. Porquê? Tenho que conhecer a minha filha. Vocês tiram-me a minha filha, e nem a cara dela vi". "Ai! A senhora é doida. A senhora não pode estar aqui.". "Não pode estar aqui o quê?".
A partir daquele dia, todos os dias levavam-me, todos os dias. Na cadeira de rodas. E eu, na cadeira de rodas. Eu ia ver a minha filha. Mas doía-me muito. Ai minha mãe! Eu via a minha filha a saltar. Fogo!
A saltar naquela estufa. Oh, minha mãe! Estufa, daquelas de vidro, ela dava cada pulo. A miúda assim a bater... Aquilo marcou-me para toda a vida. Daquilo não me esqueço, nunca, nunca, nunca.
Fogo! Mas graças a Deus, tenho um espectáculo de filha, ela está bem. Só por causa da falta de ar é que não está totalmente bem, mas mesmo assim...
Ventura – Que Deus te ajude com ela. Enquanto os criamos passamos por maus bocados, mas vale a pena.
Vanda – É verdade.
Ventura – E agora eles é que...
Vanda – Já criaste os teus agora eles é que...
Ventura – Todos me ajudam.
Vanda – É verdade. A minha filha ajudou-me muito. Sabes, é que se não fosse pela minha filha, ainda hoje estava na droga, papá.
Ventura – Isso é que não é vida.
Vanda – Acredita, se não fossem a minha filha e o meu marido ainda hoje eu estava naquela vida de droga...
Ventura – Hoje, tu também já estarias morta.
Vanda – Teria morrido.
Como me deu tanta coragem, o meu marido. Ajudou-me como...
Se eu te contasse a vida do meu marido, as coisas que ele fez por mim. Nenhum homem fazia. O homem nem as drogas conhecia, eu é que o mandava comprar droga. Eu dizia-lhe, "Vai a este sitio, aqui e ali. Pergunta por este homem.". O meu marido... por isso é que eu gosto tanto dele. O meu marido ajudou-me tanto, tanto, tanto até demais.
Ventura – Largaste as drogas, Vanda?
Vanda – Claro, há quase dois anos.
Se eu não largasse as drogas estava assim. Achas?
(...) »


Pedro Costa, «Casal da Boba», Fora!, Museu de Serralves, Porto, 2005

2 comentários:

Anónimo disse...

Gosto de ler por aqui.

Caleidoscópio Eterno disse...

Tenho uma personagem chamada Vanda também. E como é estranho e interessante vê-la caminhando por outros lugares. Ela realmente tem vida própria, tal como as palavras.
Gostei da forma como você conduziu o diálogo. O Ventura um pouco inerte. Nos meus contos tenho o Vicente...