domingo, janeiro 29, 2006

O caminho para a execução


« – Há pouco, efectivamente – dirigiu‑se‑lhe o príncipe, voltando a entusiasmar‑se (parecia ser rápido e convicto a entusiasmar‑se) –, tive realmente uma ideia, quando a menina me perguntou por alguma coisa para pintar, me pediu para sugerir‑lhe um tema: pintar o rosto do condenado um minuto antes do golpe da guilhotina, quando ainda está de pé no cadafalso, antes de deitar a cabeça no cepo.
– Porquê o rosto? Só o rosto? – perguntou Adelaída. – É um tema estranho. E que quadro pode sair daí?
– Por que não? – insistia o príncipe com ardor. – Eu vi em Basileia, há tempos, um quadro assim. Gostaria muito de contar‑lhe... Ainda um dia lhe conto... impressionou‑me muito.
– Sobre o quadro de Basileia há‑de falar‑nos sem falta depois dis­se Adelaícha –, mas agora explique‑me como tem de ser um quadro sobre uma execução. Pode expô‑lo tal como o está a imaginar? Como deve ser pintado esse rosto? E que rosto é esse?
– E mesmo no minuto anterior à execução – começou o príncipe com toda a prontidão, levado pela recordação e, pelos vistos, esque­cido repentinamente de tudo o resto –, no próprio momento em que o homem subiu a escada e acabou de dar um passo sobre o cadafalso. Então, olhou na minha direcção; olhei para o rosto dele e percebi tudo... De resto, como posso reproduzi‑lo? Eu queria muito, mesmo muito, que a menina ou alguém o desenhasse! Mas é melhor que seja a menina! Naquele momento pensei que seria um quadro útil. Sabe uma coisa? Será preciso imaginar tudo o que se passou antes, tudo, tudo. A prisão onde vivia e esperava a execução para dali, digamos, uma semana; contava com os formalismos normais, com o papel que tinha de ir a qualquer lado e só estaria pronto dali a uma semana. Mas, de repente, por qualquer motivo, o processo foi acelerado. Às cinco da manhã estava a dormir. Era em finais de Outubro, e às cinco ainda está frio e escuro. Entrou um carcereiro, com os guardas, e sem fazer barulho tocou‑lhe suavemente no ombro; o homem soergueu‑se, apoiou‑se nos cotovelos, viu a luz: «O que se passa?» – «A execução está marcada para as dez horas.» Ainda mal acordado, não acreditou, pôs‑se a discutir dizendo que o papel só chegaria dentro de uma se­mana. Mas quando ficou bem acordado deixou de discutir e calou‑se – pelo menos assim o contaram depois –, e então disse: «É difícil, assim de repente...» – voltou a calar‑se, e já não quis dizer mais nada. A seguir, três ou quatro horas em que se fazem as coisas habituais: o padre, o pequeno‑almoço em que lhe servem vinho, café e carne de vaca (não é um gozo? Pensem só na crueldade que isso é, mas, por outro lado, juro por Deus, essa gente ingénua fá‑lo do fundo do co­ração e tem a certeza de que é humanismo), depois a higiene (sabem o que é a higiene de um criminoso?), finalmente levam‑no numa car­roça pela cidade até ao cadafalso... Penso que nessa altura ainda lhe parece que tem uma vida infinita pela frente, enquanto estão a levá­‑lo. Deve ter pensado pelo caminho: «Ainda falta muito, ainda tenho três ruas para viver; passo esta, depois ainda falta aquela, depois ainda aquela onde há uma padaria, à direita... ainda falta muito até à pada­ria!» Por todo o lado a multidão, gritos, barulho, dez mil caras, dez mil olhares – é preciso suportar isso tudo, e sobretudo o pensamento: «São dez milhares, mas não executam nenhum deles, executam‑me a mim!» Pois, é isso que acontece antes. Uma escadinha leva ao cada­falso; nisto, no fundo da escada, o homem de repente chorou, e era um homem forte e valente, um grande facínora, dizem. Com ele es­tava sempre um padre, já na carroça ia com ele, e falava‑lhe, falava­‑lhe sempre – é pouco provável que o outro o ouvisse: mesmo que comece a ouvir, deixa de perceber a partir da terceira palavra. Foi assim, acho eu. Por fim, lá começou a subir a escadinha: as pernas são­‑lhes atadas, por isso os condenados dão passos miúdos. O padre, homem pelos vistos inteligente, deixou de falar, mas estendia‑lhe a cruz, sempre, para a beijar. No fundo da escada o homem estava muito pálido, mas quando acabou de subir e entrou no cadafalso, então ficou branco como papel, literalmente branco como papel branco de escre­ver. Talvez se lhe enfraquecessem e entorpecessem as pernas, mas, en­joado, isso estava – como se alguma coisa lhe apertasse a garganta e lhe fizesse uma espécie de comichão (nunca o sentiram quando assus­tadas ou nos momentos extremamente terríveis em que a razão fun­ciona plenamente mas não tem poder nenhum?). Quer‑me parecer que quando a morte está iminente, quando uma casa vai desabar por cima de alguém, por exemplo, surge a vontade terrível de se sentar e fechar os olhos, e esperar – seja o que tem de ser!... Então, quando lhe vinha essa fraqueza, o padre, muito depressa, com um gesto rápido e silen­cioso, encostava‑lhe a cruz aos lábios, uma cruz pequena, de prata, de quatro pontas – chegava‑lha muitas vezes aos lábios, a todo o instante. Mal a cruz lhe aflorava os lábios, o homem abria os olhos e animava‑se por alguns segundos, mexia os pés, andava. Beijava a cruz ansiosamente, apressava‑se muito a beijá‑la, como se tivesse pressa de não se esquecer de levar consigo alguma coisa de reserva, para o que desse e viesse, mas era improvável que consciencializasse, nesse ins­tante, alguma coisa de religioso. E era assim até ao cepo... E estranho que nestes últimos segundos as pessoas raramente desmaiem! Pelo contrário, a cabeça vive e funciona intensamente, talvez com muita, muita, muita força, como uma máquina em funcionamento; imagino que os pensamentos latejem e latejem, todos inacabados, e talvez sejam pensamentos ridículos, despropositados: «Aquele que está ali a olhar tem uma verruga na testa, o carrasco tem um botão de baixo enferrujado...», e, no entanto, sabe e lembra‑se de tudo; chega‑se a um ponto em que é impossível esquecer, e é impossível desmaiar, e é em torno dele, desse ponto, que tudo anda e tudo gira. Pensem só que é assim até ao último quarto de segundo, quando a cabeça já está sobre o cepo, e ele espeta, e... sabe, e de repente ouvirá por cima de si o deslizar da lâmina! Ouvi‑lo‑á infalivelmente! Eu, se estivesse lá deitado, pôr‑me‑ia expressamente à escuta e ouviria! Talvez seja apenas uma décima de instante, mas ouve‑se, infalivelmente! E, imaginem só, ainda há até hoje quem discuta a hipótese de que a cabeça, se calhar, mesmo quando cai sabe, ainda por um segundo, que caiu – mas que consciência! E então se forem cinco segundos!... Desenhe o cadafalso, de maneira a que seja visto nitidamente e de perto apenas o último degrau; o criminoso a pisá‑lo; a cabeça, o rosto pálido como papel, o padre a estender‑lhe a cruz, o homem que estica ansiosamente os lábios azuis e olha, e que... sabe tudo. A cruz e a cabeça – eis o quadro; o rosto do padre, do carrasco, dos dois ajudantes, e várias cabeças e olhos em baixo – tudo isso pode ser pintado como que em terceiro plano, numa neblina, como acessórios... É esse o quadro. »

Fiódor Dostoiévski, O Idiota, trad. do russo de Nina Guerra e Filipe Guerra, Presença, Lisboa, 2001, pp. 67-70.

[bem sei que é talvez um contra-senso colocar aqui coisas desta grandeza, doutra mão, sem falar de direitos de tradutor, mas ainda assim, tomado pela impudica memória do choro à sua leitura, quer-me parecer que precisamente uma inadequação pode, nestes tempos, ser o adequado, transmissível, quando quase todas as coisas precisam ou de ser deixadas em paz ou de ser desviadas à bela adequação que as sufoca... para mais, é mesmo uma imagem, se as há...]

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