terça-feira, janeiro 24, 2006

As pessoas, pensava eu


« Durante um certo tempo, vamos numa direcção com as pessoas, depois retomamos o nosso ânimo e viramo-lhes costas. Fui eu que lhes virei as costas, não elas, pensava eu. Acorrentamo-nos a elas e, de repente, tomamo-lhes horror e deixamo-las. Durante anos, corremo-lhes atrás e pedinchamos a sua simpatia, pensava eu, e quando de repente temos a sua simpatia, já não queremos de todo a sua simpatia. Fugimos diante delas, elas apanham-nos e atraem-nos a elas, e nós submetemo-nos a elas, a cada uma das suas exigências, pensava eu, e nós abandonamo-nos a elas e não saímos senão morrendo ou evadindo-nos. Fugimo-lhes, e elas apanham-nos e esmagam-nos. Corremo-lhes atrás, suplicamo-lhes que nos acolham, e elas acolhem-nos e suprimem-nos. Ou as evitamos desde logo e conseguimos evitá-las toda a vida, pensava eu, ou ficamos presos na sua armadilha e sufocamos. Ou lhes escapamos e as arrasamos então, caluniando-as, espalhando mentiras à sua conta para nos salvar, pensava eu, caluniando-as a toda a medida possível para nos salvar delas, passando-lhes por entre os dedos para salvar a nossa vida e acusando-as em toda a parte de nos terem na sua consciência. Ou elas nos escapam e nos caluniam e nos acusam, espalham à nossa conta todas as mentiras possíveis para se salvarem de nós, pensava eu. Cremo-nos já mortos, e reencontramo-las, e elas salvam-nos, mas nós não lhes ficamos reconhecidos de nos terem salvo, maldizendo-as pelo contrário, odiamo-las de nos terem salvo e perseguimo-las com o nosso ódio, por essa razão, durante uma vida inteira. Ou nos repelem, e nós vingamo-nos então e as caluniamos, arrasando-as por toda a parte, perseguindo-as finalmente com o nosso ódio até às suas campas. Ou nos ajudam a ultrapassar um mau passo no momento decisivo e as odiamos por nos terem ajudado a ultrapassar esse mau passo, tal como nos odiariam por as termos ajudado a ultrapassar um mau passo, pensava eu na poltrona de orelhas. Nós ajudamo-las um dia e cremos então ter direito à sua gratidão eterna, pensava eu, na poltrona de orelhas. Durante anos, ligamo-nos de amizade a elas e, de repente, não o somos mais, e não sabemos de todo, toda a vida, porque já não o somos de repente. Amamo-las tão intensamente que esse amor nos torna doentes, e elas repelem-nos e odeiam o nosso amor, pensava eu. Recebemos tudo delas e, em contrapartida, odiamo-las. Saímos do nada, como se diz, e elas fazem eventualmente de nós um génio, e nós não lhes perdoamos nunca de terem feito de nós um génio, como se tivessem feito de nós um criminoso calejado, pensava eu na poltrona de orelhas. Nós recebemos tudo delas, pensava eu na poltrona de orelhas, e em contrapartida, abatemo-las de desprezo e de ódio. Somo-lhes devedores de tudo, e nunca lhes perdoaremos o sermo-lhes devedores de tudo, pensava eu. Cremos ter direitos e não temos de todo direitos, pensava eu. Ninguém tem direitos de algum tipo, pensava eu. O mundo inteiro é o próprio não-direito, pensava eu. Os homens são o não-direito e o não-direito é tudo, eis a verdade, pensava eu. E nós não dispomos senão do nosso não-direito, pensava eu. »

Thomas Bernhard, Des arbres à abattre. Une irritation (1984), [tradução selvagem minha a partir da versão francesa], Gallimard, Paris, 1987, pp. 119-121.

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