sexta-feira, dezembro 30, 2005

Postal de Colónia


Colónia, 19 de Agosto de 2005

Um postal de Verão no mais frio Inverno? Será o tom que faz a estação? De qualquer maneira, em desacordo comigo próprio.

Onde a luz sobe, os candeeiros da rua cortam-na, antes que possa chegar ao céu. Assim se consegue ver o céu estrelado e dormir no escuro, se se dorme de noite. A famosa catedral, erupção da vertical, aparece então como a única ascensão iluminada. Privilégio de antigas teleologias. Mas, do outro lado, outras torres se levantam (tecnológicas, televisões e novos media) em promessas. Espanta a sua falta de timidez, dir-se-ia que não hesitam. Cada cidade o seu problema, como nas invisíveis de Calvino.

Como as pessoas são grandes! Mas, na distância física precisa que precede a intimidade, a sua beleza torna-se vulgaridade (física). Basta vê-las suficientemente de perto. Que estranho movimento por detrás da verdade, nas suas costas, nos faz encontrar a vulgaridade e a mentira, afinal, nos rostos. Mas é tão só o falhanço da beleza, não o das pessoas.

Hoje creio que posso escrever sobre a fome. Não a realidade fome, claro, mas o vazio no estômago durante horas. Um vazio que aparece na boca, que aí mais se manifesta. Esta boca com que falamos e beijamos tomada pela náusea, espaço esvaziado, incapacitante. Que beijo amoroso resiste a esta câmara putrefacta, que se autodevora? É uma ansiedade aberta, via para a inconstância, que nos retira da paz e nos faz perigar por tão pouco. Espécie de anúncio prévio da morte por subnutrição, esta fome física demanda atenção, diz-nos que nada desperta até ela estar resolvida. Que escapatórias inventar, se não queremos comer?

Que cansaço de me precipitar contra as pessoas e embater nas suas defesas tão necessárias. Por vezes, não consigo ir à rua porque sinto-a cheia dos corpos mortos das intimidades falhadas ou tentadas. Tenho medo de não ter força perante uma dessas vidas assassinadas, de ficar parado, sem ter onde esconder a vergonha, confuso no meu pequeno genocídio sentimental.
Isto de dizer eu é talvez ter a arrogância de um deus e há quem o reconheça pela fealdade, pelo artificio que subjuga, pelo gesto que trai toda a bondade. Assim se faz um cemitério de pessoas no meu coração. Que, no entanto, sempre aparecem em recordações bonitas, expontâneas, com um pouco de cor, quase ressurrectas.
Como lidar com este peso de tudo o que é falhado, como aceitá-lo como fazendo parte daquilo que não é a nossa vida, que é a alegria dos outros, felizmente inapropriável? Estou ainda a tentar aprender o básico, aquilo que todos sabem naturalmente. Por isso a minha máquina de destruição se assemelha à ciência, nesse momento originário em que faz tábua rasa de tudo para poder construir.
Acontece perguntar-me se as minhas emoções são verdadeiras. Quer dizer, se as pessoas verdadeiramente me tocam, se as desejo, ou se me projecto na ideia de as desejar, sem me comovo a mim próprio nas ideias de me comoverem. São ideias assustadoras e, principalmente, feias, do mais feio que há. Mas dizem algo, uma confusão inextricável, derradeira, sem resolução.
E é assim que me sinto aqui hoje, em Colónia, movido pela derrota. Esgotado por me ter que justificar pelo que não interessa, de ter que me compatibilizar com os esquemas violentos da vida organizada, de me fazer falsamente dócil, de um entusiasmo não compensar um atraso. Seria possível medir a participação pela intensidade em vez de pela quantidade? Não seria fácil. Ainda não se as consegue abranger pelo mesmo gesto. Nem abranger-vos por este postal.

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