sexta-feira, setembro 03, 2010

Luanda 2005

Escrevo as primeiras impressões, soltas, deslumbradas mas resistentes à afectação. O brilho branco do chão e das paredes, as portadas enormes, o sol com dentes que perfuram as árvores altas e verdejantes, erotizadas de tanta fragrância, os dias a suarem, a minha desadaptação, os gestos de coragem, as pessoas que se levam demasiado a sério, a vontade adolescente e tão musicada de partir e ficar, a batida electrónica que põe em transe os ouvidos, o ar parado das prateleiras com livros cor de laranja, as cadeiras de alto design, a casa podre com cães e crianças a dormir no chão cheio de esterco, o pôr-do-sol que dizem ser o mais belo que ainda não vi, os teus ombros e os meus passos apressados, o sofá da casa e os pneus dos carros que fazem o processo, o riso que inaugurou a alegria, a apetência para calar, o desgosto de amor, o desejo da sombra, o húmus da terra, a revolta prestes a explodir. A metáfora da panela de pressão, adaptável a todas as cidades tensas do mundo. Constante vigilância para que as coisas encaixem nalguma possível lógica, aprender a destreza de gerir o surrealismo. Uma barata a agonizar de patas para o ar. Gavetas de onde sai a roupa desorganizada (não me lembro já da voz da mãe a dizer que sou uma pessoa desarrumada). Uma insónia e La Isla Bonita da Madonna a lembrar a dança jazz e os maiôs rosa chock. Leitura de fragmentos de horror, deste mesmo país, com bolachas de chocolate. No quarto do Hotel Globo, onde vim morar por tempo indefinido e afinal passo a última noite. O mundo dos buracos nos rodapés é muito secreto, outra barata já vem surgindo. Sensações misturadas, amabilidade, amigos do peito sem os quais não sei como viver, o riso, desilusão profunda, desconfiança, a não-garantia de nada, tudo arrancado a ferros como as crianças teimosas que não querem nascer.

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