quinta-feira, setembro 27, 2007

a impropriedade

"O sentido começa a envelhecer. Não nos demoramos muito tempo perante um quadro cuja intenção é compreensível; a peça de música de natureza perceptível com os contornos definidos, é algo que nos enfada; o poema demasiado claro, demasiado explícito parece-nos... incompreensível. O reino da evidência está a chegar ao fim: que verdade precisa valerá ainda a pena enunciar? O que se pode comunicar não merece que nos detenhamos nele. Deduzir-se-á que apenas o mistério nos deve prender?
Mas o mistério não é menos aborrecido do que a evidência. quero dizer, o mistério pleno, tal como foi concebido até ao nosso tempo. O nosso, puramente formal, não passa de um expediente de espíritos desiludidos da clareza, de uma profundidade vazia, própria desta fase da arte que já não engana ninguem e em que, na literatura, na música, na pintura, somos contemporâneos de todos os estilos. O ecletismo, se lesa a inspiração, alarga, em contrapartida, o nosso horizonte e permite-nos beneficiar de todas as tradições. Liberta o teórico, mas paralisa o criador, ao qual rasga perspectivas demasiado vastas; ora uma obra constroi-se à margem ou na ausência do saber. Se o artista de hoje se refugia no obscuro, é porque ja não pode inovar com aquilo que sabe. A massa dos seus conhecimentos fez dele um glosador, um Aristarco desenganado. Para salvaguardar a sua originalidade, resta-lhe somente a aventura do ininteligível. Renunciará, portanto, às evidências que uma época sabedora e estéril lhe inflinge. Poeta, vê-se diante de palavras, das quais nenhuma, na sua legítima acepção, se encontra carregada de futuro; se quiser torná-las viáveis, terá de quebrar o seu sentido, procurar a impropriedade.(...)"

Cioran, A Tentação de Existir

1 comentário:

napalmtop disse...

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