terça-feira, outubro 17, 2006

Incêndio

desenho de Ana Eliseu

Numa casa ardida, uma mulher percorre os escombros. Escolheu o seu próprio incêndio e os dois apenas se confundem. Neste trajecto errante, irrompe contra a família e o trabalho, faz explodir computadores à mera passagem. Vagueia de noite pelas arcadas escuras de uns prédios, cercando com os seus gestos um miúdo que ensaia apenas a contracção ilegível de uma mão. Na escura madrugada dos caminhos do Vale de Chelas, avança por entre um rebanho de ovelhas e seu pastor, seguida pelo miúdo. Sós no caminho de pó, aguardam o nascer do dia, sempre selvagem.


Ao infinito o teu imenso, duro, indiferente parentesco. (Henri Michaux)

O que é uma casa ardida? O que aconteceria se nos ardesse a casa? Teríamos força para recuperar tudo, para começar a construção de novo, inclusive de nós mesmos, ou apenas desistiríamos? Depois do lamento circunstancial, que outras forças entrariam pela nossa vida adentro, inebriados pela cega liberdade de um campo de vida imensamente aberto? Eis uma intuição vital, uma suspeita sobre como se pode viver. Aparentemente, agarramo-nos à consciência de que somos o que queremos ser, mas também à de que poderíamos ser outras coisas diferentes, fosse pelo acaso ou se para isso nos esforçássemos. A idade adulta, no entanto, parece ser o advento desta crescente consciência adversa em que nos apercebemos que não é bem assim, que afinal não conseguiríamos ser diferentes, mesmo se quiséssemos. Como se houvesse um limite interior que vai diminuindo aos nossos olhos, sem abrandar...
Talvez tenhamos então a sensação de uma vida aprisionada. Nesses momentos, podemos ser tentados a identificar algumas das paredes dessa prisão que nos cerca, e que serão certamente diferentes para cada um. Perguntamo-nos: o que nos impede? Ou: o que aprisiona a vida? Conhecemos típicos sonhos de fuga, por exemplo: viajar, mudar de identidade, etc. Mas, e se o sonho e o pesadelo se confundissem? Se fosse antes o desastre de perder toda a família, ou de perder o trabalho, ou ambos ao mesmo tempo? Mesmo não se tratando de um desejo real, como deixar de se inspirar nessa hipótese de uma vida cortada de todas as ligações, uma espécie de libertação terrível?
É este movimento que uma personagem poderia descrever depois de confrontada com a sua casa ardida. Dizemos assim que os dois incêndios se confundem porque seria a vida dela que ficaria em chamas depois de apagado o incêndio da sua casa. Uma dessas paredes que a prendiam desmorona-se, e a partir daí não mais se consegue conter, derrubando em particular aquilo que parecia ser o mais forte: a família, o trabalho. Neste percurso, que é antes de mais um violento processo de desagregação, a personagem desistiria e libertar-se-ia de si própria e do resto, ao mesmo tempo. E procuraria a pequena hipótese de uma ambiguidade livre, partilhada com algumas outras pessoas numa espécie de fraternidade selvagem.

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