domingo, junho 04, 2006

Descobrir o mar


para o Vítor,
por uma intuição finalmente reunida

« Quando digo que vinha de uma família de direita é porque, e disto lembro-me vivamente, eles não recuperaram. É por isso que compreendo melhor alguns patrões actualmente, o que é um patrão actualmente. O terror com que ficaram da Frente Popular é algo de incrível. Mesmo patrões que não o viveram, mas que ficaram com ele sem o terem vivido. Para eles ficou como uma imagem do caos, pior que Maio de 68, a Frente Popular. Lembro-me de toda essa burguesia de direita... Eles eram todos antisemitas e Blum... foi algo de impressionante. O ódio que Mendès France teve sobre si não foi nada, nada, nada comparado àquele que Blum reuniu. Porque Blum foi verdadeiramente o primeiro. As férias pagas... Foi impressionante a reacção às férias pagas. Blum era pior que o diabo. Não se compreende como Pétain tomou o poder se não se percebe o nível do anti-semitismo da França nesse momento, da burguesia francesa nesse momento, o ódio às medidas sociais do Governo Blum. Foi impressionante. (...)

Quando falei há pouco das férias pagas, lembro-me melhor porque a chegada dos das primeiras férias pagas à praia de Deauville foi algo de incrível. Para um homem de cinema devia ser uma obra-prima. Porque quando víamos estas pessoas que viam o mar pela primeira vez, é prodigioso... Eu vi alguém que viu o mar pela primeira vez na sua vida, muito tempo depois. É esplêndido. Era uma rapariga do Limousin que estava connosco e que viu o mar pela primeira vez. É verdade que se há coisa de inimaginável, quando não se viu, é o mar. Podemos dizer-nos antes que o mar é algo de grandioso, de infinito, mas não pomos lá nada. Mas quando vemos o mar! Esta rapariga ficou, não sei, quatro, cinco horas diante do mar, completamente aturdida, como se fosse atrasada mental. Não se cansava de ver um espectáculo tão sublime, tão grandioso...
Então, na praia de Deauville, que era uma praia de há muito reservada aos burgueses, era a sua propriedade, eis que desembarcam os das férias pagas e gentes que, certamente, nunca tinham visto o mar. E foi grandioso, então. Se o ódio de classes quer dizer alguma coisa... não só palavras. Infelizmente, a minha mãe, que era no entanto a melhor das mulheres, dizia: «A impossibilidade de frequentar uma praia onde havia gente assim». Portanto, foi bastante duro. Eles nunca esqueceram. Os burgueses nunca esqueceram. Maio de 68 não foi nada ao pé disto! (risos)... O medo... Não podiam impedi-lo. Se davam férias aos trabalhadores, eram todos os privilégios burgueses que desapareciam... e os lugares. Também aqui se tratava de questões de territórios. Se as criadas para toda a obra vinham para a praia de Deauville, era como se dessem o seu lugar aos dinossauros, era uma agressão, era pior que os alemães. Era pior do que se os tanques alemães chegassem à praia. Era indescrítivel. »
Gilles Deleuze, «E comme Enfance», L'Abécédaire de Gilles Deleuze, edição vídeo Montparnasse, Paris, 1996

1 comentário:

André Dias disse...

« E, por fim mas não em último lugar, um direito que hoje nos parece tão natural como o ar que respiramos mas que ao mesmo tempo representou uma "revolução" e que, em termos legislativos, foi descrito nestas simples 27 palavras: "Todo o trabalhador, empregado ou aprendiz, tem direito, após um ano de serviços contínuos num estabelecimento, a férias anuais contínuas com uma duração mínima de quinze dias." (...) "À época, a ideia de se ser pago para não fazer nada era incrível e paradoxal". A verdade porém é que, beneficiando de bilhetes a preço reduzido que foram criados, logo nesse ano, 600.000 trabalhadores partiram para férias fora da sua residência e que, no ano seguinte, o seu número subiu para 1.800.000.
E para o lugar que as férias pagas vieram a ocupar no imaginário colectivo e no património de esquerda teve sem dúvida a sua importância o facto tocante e comovente de, com elas, pela primeira vez nas suas vidas muitas centenas de milhares de franceses terem descoberto e visto o mar (o que, embora em menor escala, também aconteceu em Portugal em 1974 e 1975) num dos muitos momentos de alegria colectiva que, entre outros, fotógrafos como Robert Capa e Cartier-Bresson e cineastas como Jean Renoir souberam fixar com inesquecível sensibilidade. »

Vítor Dias, «Descobrir o mar», Público, 2.6.2006