quarta-feira, junho 14, 2006
Carne, papel e tinta
Amava a vulgaridade. Aparecia em certas manhãs com marcas negras nos pulsos. Queixava-se por vezes da coluna, qualquer impressão grave no sacro. O pescoço moído, uma vez ou outra mordeduras na parte anterior dos antebraços, manchas amareladas no torso. Notava-se-lhe uma certa dor no andar ou no permanecer de pé muito tempo. Não escondeu nunca, nunca. Não tinha vergonha dos seus brincos de plástico floridos, das suas roupas garridas, do seu baton barato vermelho baço, da sua água de colónia de alfazema, do seu corpo que precisava de amachucar-se ou de ser amachucado para sentir o que quer que fosse. Falava pouco mas quando o fazia não havia a menor hesitação, o menor medo: a evidência mais pura era-o sem problemas, as asneiras tinham o mesmo tom que o resto. Mascava pastilhas de canela só para distrair a boca, para a desviar do vazio. Os companheiros que arranjava em cafés mal frequentados tinham todos o mesmo ar: olhares despudorados, risos gastos pelo tabaco, queixos mal barbeados, mãos de pedreiro com brio, posturas de motoqueiro sem tino nenhum. Acho que todos lhe bateram, ou porque a noite lhes exigia essa maldade redentora ou porque ela mesma lhes pedia (não com fins redentores mas sem fim, assim). Era nova, muito nova, tinha a mesma idade que eu. Rondava os rapazes com um ar faminto mas nunca desesperado. Ia buscá-la à casa-de-banho, quando um qualquer me dizia: a tua amiga está para ali, vai buscá-la. Usava o que tinha de carne como eu usava o que tinha de papel e tinta. Amava a vulgaridade e lembro-me, na altura, estando perto e distante dela ao mesmo tempo, de pensar que ela era perfeita. Um dia, não fui buscá-la à casa-de-banho, saí do café e não pensei mais nisso. Calámos o que nos ligava, deixámos de ver-nos. Deve ter ficado sentada no chão, junto à sanita, até recuperar forças e equilíbrio para sair sozinha. Naquele dia em que não fui buscá-la (uma quinta-feira) tinha percebido que o papel e a tinta eram tão vulgares quanto o chão onde ela descansava da vertigem e tive medo. Se a visse hoje (quinta-feira, de novo), ao fim de tantos anos, pedia-lhe que rasgasse em mim tudo o que não consegui escrever.
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