quarta-feira, fevereiro 15, 2006

Ingenuidade, a coisa mais obscena do mundo


Dançamos alegres pela madrugada de uma festa em casa. Um desconhecido à janela pede insistentemente para entrar. Depois de várias recusas, acedo e abro-lhe a porta. Ofereço-lhe uma cerveja. No meio de nós, para ele desconhecidos, parece hesitar em divertir-se. Passado um pouco, sai para comprar cigarros. Lembro-o de levar a cerveja consigo para lhe fazer companhia, sentindo que não vai voltar. Efectivamente demora, e entretanto vou-me deitar.
De manhã, ainda meio a dormir, percebo que procuram um telemóvel algures perdido. Tenho a intuição infeliz de um roubo. A vergonha da ingenuidade mancha-me o dia por completo, como uma sombra a mais que me acompanha. Sinto então esta ingenuidade como a coisa mais obscena do mundo. Descubro que ela segrega a arrogância da desatenção, a displicência oriunda de uma espécie de fraternidade desejada e aqui miseravelmente erradicada.
Depois contam que afinal ele voltou. Não o deixaram entrar porque a festa estava a acabar e as pessoas iam deitar-se. Vinha talvez continuar o assalto, ou partilhar uns cigarros ou se calhar, quem pode dizer, devolver discretamente o telemóvel. O que pensar?
Que diferente podia ter sido. O mundo não se deixa domar.

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