segunda-feira, fevereiro 20, 2006

Dias mortos


« Há cidades onde os dias morrem. Há dias que são mortos. Procuro um jornal num domingo em Lisboa. Nos domingos, as ruas estão vazias. Passam carros que vão para os centros comerciais. Mas o centro da cidade é preenchido por uma população envelhecida, que não sai à rua senão quando os filhos os vêm buscar. Onde encontrar um jornal?, pergunto. Numa tabacaria de um centro comercial ou naquilo a que se chama "uma loja de conveniência". São tão poucos os lugares que me pergunto, às vezes, para que é que se publicam jornais ao domingo. E que destino terão os colunistas de domingo. É certo que há as publicações-revista que acompanham alguns destes jornais. E no PÚBLICO temos agora a colecção de discos clássicos - nessa lista infindável de publicações, clássicos, banda desenhada, livros de arte, livros para adolescentes, talheres de mesa, moedas antigas, DVD, CD, que constitui o centro de uma verdadeira actividade editorial (muitas vezes de grande qualidade, a verdade é para ser dita), e na qual os jornais de que partiram têm hoje uma função adjacente.
As "lojas de conveniência" são uma espécie de jangada onde se vêm acolher pessoas desabrigadas da vida. Há velhos desamparados, imigrantes que não sabem onde encontrar uma bebida quente, nostálgicos de uma consolação alcoólica que as leis impedem a partir das dez horas da noite. Daí que se acumulem nos passeios, junto às portas de entrada, com tentativas regulares para entrarem, logo rechaçadas pelo vigilante do lugar. Os mais velhos protegem-se com uma sanduíche ou um bolo de arroz.
A cidade é uma cidade morta. Cada hora de uma cidade morta é uma hora morta. Cada minuto de uma cidade morta é um minuto que morre como um insecto à nossa frente. Logo de manhã, encontro uma "loja de conveniência" para comprar o jornal. Detestaria saber que há notícias nas ruas e que eu não as conheço. E atravesso lentamente o sol rendilhado e ténue da Praça José Fontana.
Alguns sem-abrigo estendem a roupa encharcada na varanda do coreto. Uma mulher está sentada num banco de jardim e fuma nervosamente, cigarro após cigarro, baforada após baforada. Deve ser uma mulher só, abandonada. O frio não a afecta. Olha para o céu, vê passar farrapos de nuvens, confunde-os com as manchas de fumo em que se esconde. Interroga-se sobre o amor, a solidão, as unhas sujas, o arranhão que tem no braço. "Ele bateu-me, minha senhora, ele bateu-me. Não podia continuar naquela casa."
Em frente dela passa um homem alto, não magro mas emagrecido ao longo dos dias que morreram. Está também só, recorda um corpo de mulher. Tem a barba por fazer, um toque de quixotismo no olhar. Também olha o céu, mas não o vê. Inclina a cabeça para o chão e dá grandes passadas. Não fuma, mas agita as mãos como quem sufoca dentro de si próprio.
O homem e a mulher não se vêem. Cada um passa sobre o fio dos seus próprios pensamentos. Até que a dada altura, ele solta um grito e corre em passos leves e absurdos. Ela olha e vê o nada que há a ver. Mas continua a fumar. Há dias em que a cidade está adormecida e vai morrendo lentamente. Dias de pedras, de raízes arrancadas, de medo e silêncio invernoso. Dias iguais a estes, cidades assim. »

Eduardo Prado Coelho, «Dias Mortos», Público, Terça-feira, 25 de Janeiro de 2005


[há também um sentido político em aqui colocar um texto de Eduardo Prado Coelho, precisamente um texto simples que tanto me diz, pois este senhor, depois de ter ensinado algumas pessoas a ler, vê-se no ocaso da idade escorraçado por tantos em estranha sincronia, por direita e esquerda finalmente reunidas; conheço-o porque foi meu professor, mesmo que não um bom professor, e ainda assim o prefiro a todos aqueles que dele, venenosos, desdenham e ridicularizam, agora que cansado, se pode menos defender; porque, lirismos à parte, há uma intuição política clara no modo preciso como acolhemos as pessoas à nossa volta, e fascistas são os que fazem vida de desprezar pessoas nos média; nessa matilha o Eduardo Prado Coelho, apesar da ironia, nunca se incluiu.]

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